Opinião
Etanol, RenovaBio e captura de carbono: O tripé para emissões negativas
Por Joaquim Seabra*
Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já deixaram muito claro a relevância de se limitar o aquecimento global a 1,5°C em comparação aos 2°C previstos anteriormente, de modo que possamos reduzir os riscos e impactos tanto para os sistemas naturais quanto para os antrópicos. E, para conseguir isto, teremos o enorme desafio de zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEE) de fontes antropogênicas ao redor de 2050.
A redução de emissões envolve diferentes medidas de mitigação, contemplando distintas combinações entre a redução da intensidade energética (assim como de outros recursos) na economia e a descarbonização de fontes de energia. Mas, em todos os casos, parece inevitável utilizarmos alguma estratégia de remoção de CO2 da atmosfera. E quanto menos avançarmos na direção da redução de emissões – ao mantermos ou expandirmos estilos de vida intensivos em GEE –, obviamente mais teremos que lançar mão de estratégias de remoção de CO2, como o reflorestamento, a captura e armazenamento geológico do carbono (ou CCS, carbon capture and storage) e a combinação do CCS com a bioenergia (no processo conhecido como BECCS, do inglês bioenergy with carbon capture and storage).
Os cenários traçados pelo IPCC e pela Agência Internacional de Energia (IEA) têm apontado que a bioenergia deverá ser uma importante aliada não só para as ações climáticas, como também para se alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável. Naturalmente estamos falando do uso moderno da biomassa, explorando resíduos e eficientes culturas dedicadas para a produção de uma diversidade de produtos, como combustíveis, eletricidade, alimentos, produtos químicos etc. Esse arranjo é capaz de entregar múltiplos serviços energético-ambientais, aos quais ainda podemos graciosamente agregar mais um: a remoção de CO2 para atendimento à urgência climática.
Assim como no caso do emprego do CCS em termoelétricas a carvão, também é possível utilizar estratégias BECCS para capturar o CO2 proveniente das chaminés das plantas de cogeração das usinas de cana-de-açúcar e milho, por exemplo. Não obstante, o CO2 mais fácil de capturar é o gerado no processo de fermentação para a produção do etanol. Por se tratar de uma corrente de CO2 praticamente pura, o processo é muito mais simples, o que se traduz nos mais baixos custos de captura. Isso amplia o benefício energético-ambiental do etanol como substituto das opções fósseis, viabilizando a obtenção de emissões negativas tendo em conta todas as atividades ao longo da cadeia produtiva, isto é, do ciclo de vida.
Considerando os volumes atuais de produção de etanol anidro e hidratado no Brasil, estamos falando de um potencial de captura anual de mais de 20 milhões de toneladas de CO2 somente associado à fermentação. Se somarmos a isso a contribuição do CO2 das chaminés, esse potencial pode mais do que triplicar. Tudo isso combinado à expansão da produção e uso do etanol ajudaria a pavimentar o caminho do Brasil para atuar como um importante sumidouro de carbono.
Nesse sentido, cabe aqui mencionar a relevância estratégica da política brasileira de biocombustíveis, conhecida como RenovaBio. Lançado em 2017, tendo como pano de fundo os compromissos assumidos na Contribuição Nacionalmente Determinada no âmbito do Acordo de Paris, o RenovaBio visa à promoção da adequada expansão dos biocombustíveis na matriz energética, assegurando previsibilidade para o mercado, ao mesmo tempo em que induz ganhos de eficiência energética e a mitigação das emissões de GEE na cadeia produtiva.
Um aspecto que merece destaque é que a própria lei do RenovaBio prevê a aplicação de um bônus de até 20% sobre a nota de eficiência energético-ambiental quando houver comprovação de emissão negativa de GEE no ciclo de vida do biocombustível em relação ao seu substituto de origem fóssil, o que é tipicamente viabilizado pelo BECCS.
Mas há ainda um outro importante compartimento a ser explorado para o sequestro de carbono associado ao etanol: o solo. A maior parte da expansão recente da cana-de-açúcar se deu sobre áreas de pastagens, muitas das quais com importantes níveis de degradação e com estoques de carbono no solo relativamente baixos. Neste processo de transição para a cultura da cana, maiores estoques são estabelecidos, representando um relevante sequestro de carbono. E diversos estudos têm indicado que essa tendência deverá ser mantida na expansão futura da cana. Além disso, o forte processo de mecanização da colheita da cana-de-açúcar (com o abandono da prática da queimada) também tem conduzido a um aumento expressivo dos estoques de carbono no solo (cerca de 1,5 tonelada de carbono por hectare por ano).
Para além da cana, esse fenômeno também pode ser explorado no sistema de produção do etanol de milho de segunda safra no Brasil. Esse sistema se caracteriza principalmente por dois elementos: o uso do milho safrinha (cultivado principalmente em combinação com a soja) e do cavaco de eucalipto como combustível para as caldeiras. Novamente temos um grande potencial para sequestro de carbono no solo, especialmente através da tendência natural de estabelecimento de plantações de eucalipto nas áreas de pastagens.
Ou seja, o Brasil tem a grande oportunidade de utilizar o etanol como um mecanismo não só de mitigação de emissões, mas também como promotor de sequestro de carbono. Nesta relação sinérgica, o etanol viabiliza os custos mais baixos para a captura e sequestro de carbono, enquanto a captura amplifica sobremaneira o benefício do etanol como estratégia de descarbonização.
Mas, para que essa relação virtuosa se concretize, será essencial garantir um contexto político e regulatório apropriado, de modo que os projetos possam se estruturar de forma economicamente viável. Hoje, o RenovaBio já é um importante mecanismo nesta direção, mas deve ser complementado por outras ações, como, por exemplo, um marco legal para projetos de CCS e outros elementos delineados no Programa Combustível do Futuro, permitindo que o Brasil seja um protagonista no sequestro de carbono através dos biocombustíveis.
* Joaquim Seabra é professor do departamento de energia da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp; é doutor em planejamento de sistemas energéticos com pós-doutorado em nos EUA e desenvolve projetos de avaliação de sistemas bioenergéticos para instituições governamentais e privadas
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