O abismo entre o modelo legal e as ocupações: até onde vai o direito de propriedade?
Por William Matheus Martinez
A reforma agrária no Brasil tem como objetivo promover uma distribuição mais justa das terras rurais, assegurando sua função social e contribuindo para a justiça social e o desenvolvimento econômico no campo. Será que a reforma agrária realmente representa um risco para os proprietários de terras rurais? À primeira vista, não deveria ser. Afinal, a sua execução está baseada em premissas legais e objetivas. No entanto, essa não é, em muitos casos, a realidade observada.
Para que a reforma agrária ocorra de forma segura, seria essencial que três pilares fossem respeitados: (i) obediência à legalidade, (ii) ausência de instrumentalização político-ideológica e (iii) compromisso dos assentados com o uso adequado da terra.
Mas o que é, de fato, a reforma agrária? De acordo com a Constituição Federal, o Estado pode desapropriar, por interesse social, imóveis rurais que não estejam cumprindo sua função social. Essa função é aferida por quatro critérios: (a) aproveitamento adequado, (b) uso racional dos recursos naturais, (c) observância das normas trabalhistas e (d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Esse é o modelo ideal, previsto em lei. No entanto, no Brasil, o cenário fático revela um quadro distinto.
A reforma agrária tornou-se bandeira central de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fundado em 1984 com ideologia marxista e foco em romper com o modelo fundiário concentrador. O problema é que, muitas vezes, suas ações incluem ocupações e invasões ilegais de terras privadas, contrariando frontalmente o direito de propriedade.
O procedimento legal para a reforma agrária exige etapas técnicas: identificação do imóvel pelo INCRA, vistoria com emissão de laudos, análise sobre o cumprimento da função social e, por fim, decreto presidencial formalizando a desapropriação — tudo isso com pleno respeito ao contraditório e à ampla defesa do proprietário rural.
Ao optar pela ocupação forçada, movimentos sociais ignoram essa estrutura legal e passam a adotar práticas que, além de ilegais, são politicamente radicalizadas. Justificam tais atos pela morosidade administrativa do Estado, atribuindo ao particular a responsabilidade pela ineficiência pública, o que compromete gravemente a segurança jurídica no campo.
Não por acaso, este artigo foi redigido no mês de abril, período em que ocorre o chamado “Abril Vermelho” — mês símbolo das mobilizações pela reforma agrária. Sem entrar no mérito do episódio de Eldorado dos Carajás, fato é que abril passou a representar uma estratégia deliberada de ocupações ilegais coordenadas.
Para o setor produtivo, o “Abril Vermelho” não é apenas uma manifestação política, mas sim uma ameaça concreta à ordem legal, à posse legítima e à estabilidade da produção agropecuária. Diante desse cenário, a pergunta mais relevante é: como o produtor rural pode se proteger? A primeira barreira de proteção é a propriedade rural cumprir integralmente sua função social. Isso inclui: uso produtivo e sustentável da terra, regularidade ambiental e trabalhista, documentação atualizada e laudo técnico atestando a função social.
Em situações de risco, a adoção de medidas legais é fundamental. Por exemplo: Interdito proibitório, no caso de ameaça iminente de invasão, Ação de manutenção de posse, quando há perturbação sem perda da posse ou ação de reintegração de posse, quando há invasão efetiva.
Medidas administrativas também são recomendadas, como a lavratura de boletim de ocorrência e denúncia formal ao INCRA. Em todos os casos, é imprescindível que as reações estejam amparadas por decisão judicial, evitando qualquer tipo de retaliação direta, o que poderia configurar autotutela. Mas afinal, não se esqueça que é obrigação do Estado garantir o respeito ao direito de propriedade, um dos pilares do Estado de Direito.
*William Matheus Martinez é advogado pós-graduado em Direito Corporativo pela Escola Paulista do Direito, com Master Business Administration em Agronegócio pela ESALQ/USP, Master of Laws – LLM em Direito Societário pelo Insper, especialista em Mediação e Arbitragem pela FGV/SP e em Fusões e Aquisições pela Columbia University. Mestrando em Agronegócio pela ESALQ/USP e sócio do escritório Martinez & Associados.