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Coisa julgada: por que decisão do STF intensifica a insegurança jurídica do setor canavieiro?
Além de intensificar a insegurança jurídica, a decisão prejudica desenvolvimento econômico do país
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) tomada no início deste mês sobre a “coisa julgada” na área tributária, tem sido vista com muita preocupação por parte do setor sucroenergético por trazer insegurança jurídica.
Em decisão, tomada por unanimidade, o STF considerou que uma decisão definitiva, a chamada “coisa julgada”, sobre tributos recolhidos de forma continuada, perde seus efeitos caso a Corte se pronuncie em sentido contrário. Isso porque, de acordo com a legislação e a jurisprudência, uma decisão, mesmo transitada em julgado, produz os seus efeitos enquanto perdurar o quadro fático e jurídico que a justificou. Havendo alteração, os efeitos da decisão anterior podem deixar de se produzir.
A Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), entidade representativa de mais 120 empresas do setor sucroenergético, veio a público manifestar preocupação. “A mudança de entendimento da Corte instaura um ambiente de insegurança jurídica, já que permite o cancelamento de decisões definitivas (transitadas em julgado) em questões tributárias, atingindo de forma prejudicial o desenvolvimento econômico do País. A alteração de jurisprudência, ressalta-se, impacta diretamente no planejamento tributários das empresas”, disse.
O advogado da área Tributária do escritório Pereira Advogados, Heitor César Fabbris Cardoso, explica que o recurso extraordinário 949.297 foi interposto nos autos de um mandado de segurança impetrado por Têxtil Bezerra de Menezes S/A – TBM, que visava questionar fiscalização da Receita Federal do Brasil a respeito da Contribuição Social sobre o Lucro, prevista na Lei nº 7.689/1988, uma vez que a empresa possuía decisão judicial transitada em julgado cujo teor reconhecia ser indevida, por motivos de inconstitucionalidade, a exigência do referido tributo.
Em sede de apelação, a contribuinte obteve provimento favorável do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, dando, assim, origem ao recurso extraordinário 949.297, interposto pela União. Segundo o advogado, ao chegar a questão ao Supremo Tribunal Federal, para surpresa de processualistas e tributaristas, a Corte deu provimento ao recurso extraordinário, fixando, assim, as seguintes teses:
“1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
- Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”.
Para Cardoso, o entendimento do Supremo produzirá efeitos imediatos, já que a Corte optou por não modular os efeitos da decisão. “As usinas e produtores de cana-de-açúcar, assim como todas as outras empresas atuantes no Brasil, serão negativamente afetadas pela decisão proferida, pois tributos não recolhidos aos cofres públicos, ainda que acobertados por sentenças/acórdãos transitados em julgado, poderão ser cobrados pelos Municípios, Estados e União caso a Suprema Corte profira entendimento contrário ao da decisão que fez coisa julgada em favor do contribuinte”, explica.
O ministro Barroso, que conduziu a tese vencedora no julgamento, disse não se pode falar em prejuízo às empresas uma vez que o STF validou o imposto em 2007 e, desde então, as empresas deveriam ter passado a pagar ou no mínimo ter provisionado recursos para esta finalidade. “A insegurança jurídica não foi criada pela decisão do Supremo. A insegurança jurídica foi criada pela decisão de, mesmo depois da orientação do Supremo de que o tributo era devido, continuar a não pagá-lo ou a não provisionar. (…) A partir do momento em que o Supremo diz que o tributo é devido, quem não pagou ou provisionou fez uma aposta”, disse o ministro.
No entanto, de acordo com Cardoso, a insegurança é nítida quando se fala em questões tributárias. “O Brasil é, há tempos, um país de baixa liberdade econômica, ocupando a posição de nº 133 do 2022 index of economic freedom (https://www.heritage.org/index/country/brazil), atrás de países como Nicarágua, Nigéria e Uganda. Deve-se muito dessa condição ao complexo e burocrático ambiente negocial que vige no país, o qual, por si só, resulta em significativa insegurança jurídica”, afirma o advogado.
Um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação – IBPT indica que, da promulgação da Constituição Federal de 1988 até o ano de 2020, foram criadas 32.104 normas tributárias federais, 138.042 normas tributárias estaduais e 249.241 normas tributárias municipais (https://ibpt.com.br/estudo-sobre-a-quantidade-de-normas-editadas-no-brasil-desde-a-ultima-constituicao-2020).
“Esta, aliás, é a razão pela qual muitos contribuintes buscam o judiciário para obter o reconhecimento do direito de não pagar tributos exigidos em desconformidade com a Constituição Federal e com as legislações tributárias, já que as decisões judiciais lhes dariam, em tese, segurança para agir de determinado modo perante os Fiscos. Portanto, o entendimento proferido no âmbito do recurso extraordinário 949.297 não instaura um ambiente de insegurança jurídica, mas sim intensifica em proporções inimagináveis e astronômicas a insegurança jurídica já existente, contribuindo assim para um considerável agravamento do pouco atrativo ambiente negocial brasileiro”, explica o advogado.
Isto porque, de acordo com ele, as decisões judiciais sempre foram o pilar buscado pelos contribuintes para se resguardar da insegurança jurídica causada por uma legislação complexa e pouco protetiva para empreendedores e investidores. “Considerando que as decisões judicias transitadas em julgado perderam seu caráter de imutabilidade, só há como concluir que o contribuinte não possui nada mais que possa assegurá-lo, de forma concreta, dos seus direitos tributários”, adiciona.
Com isso, a decisão deve prejudicar o desenvolvimento econômico do país, uma vez que a relativização da coisa julgada, juntamente com os diversos fatores que tornam o Brasil um país com baixa liberdade econômica, será mais um aspecto apto a repelir investidores externos e a desestimular o empreendedorismo no Brasil.
Planejamento tributários das empresas
O impacto da decisão para as empresas terá, em diversos aspectos, proporções inimagináveis. Neste sentido, o planejamento tributário será só mais um dos vastos aspectos que os empresários precisarão se preocupar ao lidar com o Fisco. O advogado lembra que o questionamento administrativo e judicial de teses tributárias é uma das frentes de ação da gestão estratégica de tributos. Sendo assim, só há como concluir que a relativização da coisa julgada enfraquece, diretamente, uma das linhas do planejamento fiscal, isto é, a legitima redução da carga tributária baseada em decisões judiciais.
“Em síntese, como as decisões judiciais não mais garantem segurança para o contribuinte deixar de pagar determinado tributo, entende-se que haverá impacto no planejamento fiscal das empresas, notadamente na frente de ação consistente no questionamento administrativo e judicial de teses tributárias”, complementa.
A Unica, em nota, disse que espera que a Suprema Corte reveja o seu entendimento, respeitando decisões definitivamente julgadas anteriormente, bem como o princípio basilar da irretroatividade, para o restabelecimento de um ambiente de negócios saudável, sem colocar em risco empregos e geração de renda ao Brasil.
No entanto, para o advogado, a revisão do entendimento é improvável. “Embora o acórdão do recurso extraordinário 949.297 ainda não tenha transitado em julgado, os meios processuais para impugná-lo não têm, em regra, o condão de alterar a tese fixada pelo Supremo. Portanto, a não ser que, futuramente, a Suprema Corte decida rediscutir a matéria (o que é bem improvável, pelo menos a curto prazo), o contribuinte terá que lidar com mais essa insegurança ao exercer suas atividades”, conclui.
Natália Cherubin para RPAnews
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