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Edição 206

Cana: amiga do meio ambiente, mil e uma utilidades

Publicado

em

Alisson Henrique

Foi-se o tempo em que a cana-de-açúcar era usada apenas para a produção de açúcar e etanol. Com o passar dos anos, a evolução tecnológica fez com que a planta se tornasse também geradora de energia. No entanto, o desenvolvimento na utilização desta matéria-prima não parou por aí. Aliado à tendência ecológica – crescente desde o início do novo século -, que visa a diminuição dos gases poluentes, o combate ao desmatamento e a construção de um mundo mais sustentável, os subprodutos advindos da cana se tornaram um dos principais trunfos na busca pela sustentabilidade.

Pouco se sabe, mas o uso pleno da cana-de-açúcar gera uma infinidade de soluções, podendo essas serem desde novos produtos alimentícios até produtos de beleza e embalagens plásticas, por exemplo. No Brasil, um dos principais pilares das pesquisas que vislumbram o uso total da matéria-prima é o CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), Organização Social supervisionada pelo MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações). Mario Murakami, diretor científico do CTBE (Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol ), explica que o etanol que temos nos postos de combustíveis e o açúcar dos supermercados, representa apenas um terço de toda a biomassa da planta. “Visto isso, ainda sobra muita matéria, que além de poder ser usada na geração de etanol de segunda geração (2G), pode gerar bioeletricidade e uma diversidade de outros bioprodutos e biomateriais, como por exemplo a lignina, uma fração tão abundante quanto os polissacarídeos no bagaço e palha que pode ser biotransformada em uma gama de intermediários químicos. Hoje, não é difícil encontrar cremes, shampoos, embalagens e utensílios de plástico oriundos da cana. Todavia, ainda há muito que se desbravar neste mar de oportunidades”, relata Murakami.

Junto ao CNPEM, o CTBE tem focado em pesquisas e desenvolvimento de rotas e novas tecnologias para a utilização integral da cana-de-açúcar, incluindo o caldo, a palha, o bagaço e potenciais derivados do processamento desses materiais. “Dois exemplos de pesquisas aplicadas em andamento são o desenvolvimento de enzimas e leveduras ‘engenheiradas’ para viabilizar a tecnologia do 2G no país e os estudos em larga escala, junto ao setor sucroalcooleiro, para o uso otimizado da palha na indústria”, explica Murakami.

  De acordo com ele, o CTBE/CNPEM recentemente licenciou duas patentes envolvendo tecnologias enzimáticas para o melhor aproveitamento de biomassa na indústria de bebidas e alimentos, que tem uma grande sobreposição de competências com as pesquisas sobre a desconstrução da biomassa advinda da cana-de-açúcar. “As áreas de enzimas industriais e de plataformas microbianas estão entre as principais competências do CTBE/CNPEM junto à Biorrefinaria Virtual, e tem sido empregada não somente para superar os desafios relacionados ao bioetanol, mas também para outros processos biotecnológicos de importância ao país.”

 Uma das principais pesquisas no CTBE/CNPEM poderá chegar em breve ao consumidor. Trata-se da rota tecnológica para o etanol 2G, que pode aumentar em até 45% a produção do combustível sem a expansão de um hectare de cana sequer. “Estamos desenvolvendo, em parceria com a indústria, soluções tecnológicas customizadas à cana-de-açúcar e às singularidades existentes no país, de forma que o bioetanol feito a partir da planta seja ainda mais rentável, sustentável e limpo. Outra forte atuação é no co-desenvolvimento de processos industriais envolvendo parceiras do setor biotecnológico e de químicos, que visam transformar a biomassa vegetal em bioprodutos de valor agregado” adiciona Murakami.

A CANA NO CORPO

A Biossance é uma das empresas que vem apostando no potencial da cana-de-açúcar em cosméticos. Na formulação de seus produtos, usa o esqualano, uma molécula extraída de forma sustentável da cana-de-açúcar que, segundo Camila Farnezi, diretora Comercial & Marketing companhia, hidrata a pele imediatamente enquanto fixa a hidratação natural.

“A Biossance faz parte do grupo Amyris, empresa de biotecnologia americana fundada por um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, com a missão de usar a biotecnologia para tornar o mundo mais saudável. Em 2003, nossos cientistas desenvolveram uma tecnologia patenteada para criar uma forma acessível de curar a malária. Inspirados nesse caso, continuamos usando a biotecnologia. Combinados à cana para causar um impacto positivo no mundo, focados na produção de medicamentos biofarmacêuticos, desde emolientes e fragrâncias cosméticas até combustíveis, solventes, lubrificantes e nutracêuticos” revela.

De acordo com Camila, a Amyris tem revolucionado a indústria de cosméticos, fornecendo ingredientes derivados de açúcar para centenas de marcas líderes mundiais, a exemplo do próprio emoliente esqualano. “Devido ao grande sucesso no mercado, a Amyris investiu na primeira linha de produtos para o cliente final: a Biossance, marca de beleza sustentável que usa a biotecnologia para criar produtos de cuidados com a pele, utilizando o esqualano como ingrediente principal”, pontua.

O corpo humano produz sua própria versão do esqualano, molécula que instantaneamente hidrata a pele. Entretanto, o montante produzido diminui ao longo dos anos. Historicamente, a única maneira de obter esse ingrediente é colhê-lo de forma insustentável do fígado de tubarão ou das azeitonas. A Amyris foi pioneira em criar o esqualano de forma ética e sustentável com a extração da cana-de-açúcar brasileira.

“Para poder extrair o produto, o processo de engenharia de organismos vivos da empresa utiliza o carbono presente na fermentação do xarope da cana-de-açúcar como fonte energética para as leveduras, que após hidrogenadas produzem a molécula do esqualano”, detalha Camila.

A gama de opções que a cana proporciona no mercado fica evidente quando, além do produto em si, a matéria-prima também é a principal composição da embalagem. “A Biossance prioriza a sustentabilidade em todo processo, inclusive nas embalagens. Utilizamos embalagens tree-free, feitas com papel produzido a partir da fibra da cana”, destaca.

COSMÉTICO “VERDE”: DEMANDA DEVE CRESCER

Álcool obtido a partir de fontes vegetais renováveis, como frutas e cana-de-açúcar, o sorbitol deverá ter crescimento de sua demanda na indústria cosmética, segundo um relatório internacional da TechNavio, empresa de pesquisa e consultoria em tecnologia. O ingrediente é utilizado como umectante e emoliente na produção de cremes, emulsões e loções, além de cremes dentais.

O documento mostra projeções do mercado global de sorbitol entre os anos de 2017 e 2021, considerando também o uso do insumo nas indústrias alimentícias e farmacêuticas. Na América Latina, a expectativa é de geração de US$ 282,2 milhões pelo sorbitol. Em todas as regiões, o aumento na demanda é impulsionado por seu uso em produtos de cuidados pessoais.

“Na América Latina, espera-se que o mercado de cosméticos cresça a uma taxa mais elevada em comparação com os EUA, devido ao aumento da demanda de países como Brasil e Argentina. O crescimento da indústria de higiene pessoal e cosméticos deve impulsionar a busca por sorbitol na região durante o período analisado”, esclarece no documento Kshama Upadhyay, especialista em pesquisa de especialidades químicas da TechNavio.

Luiz Gustavo Martins Matheus, diretor técnico da fabricante de bioativos para a indústria cosmética Mapric, explica que a busca crescente por ingredientes naturais e sustentáveis nas formulações cosméticas também pode expandir a demanda pelo sorbitol. “Algumas das vantagens do sorbitol em relação a produtos petroquímicos estão relacionadas à sua origem renovável e características de segurança toxicológica, comprovadas por inúmeros artigos científicos”, esclarece o diretor técnico.

TIJOLOS: TESTE COM BAGAÇO É VIÁVEL

A I9 Construindo realizou experimentos práticos introduzindo percentuais de bagaço de cana e cinzas de caldeira em suas massas bases para produção de tijolos ecológicos e, de acordo com Robson Binhardi, sócio e co-fundador da I9, pode ser uma solução viável. “Como introduzimos pequenos percentuais desses materiais em nossos testes [de 8% a 12 %], houve apenas uma pequena redução na resistência à compressão, imperceptível com interação humana, já as demais características como dimensão, tonalidade, estética foram todas muito bem aceitas”.

Segundo a empresa, os tijolos feitos com bagaço e cinzas de caldeiras foram apenas um experimento de apresentação para a última Fenasucro&Agrocana. No entanto, serve para demonstrar mais uma opção para que o uso pleno da cana seja atingido. A empresa vem se destacando há algum tempo na construção de tijolos ecológicos. Na base dos produtos estão os resíduo da construção civil, material que é descartado em construções, reformas e demolições, relata Binhardi.

PLÁSTICO VERDE

A busca por soluções inovadoras e sustentáveis sempre foi um dos pilares de atuação da Braskem. As pesquisas para desenvolvimento do Plástico Verde I’m green ocorrem desde 2005, mas a escala industrial passou a ser feita somente a partir de 2010, após adaptações feitas na planta da empresa, localizada no Polo Petroquímico de Triunfo, RS.

“A diversificação de matérias-primas norteia a atuação da Braskem e faz parte de uma estratégia que nos deixa menos vulneráveis a externalidades. O biopolímero da Braskem é resultado de um projeto de pesquisa e desenvolvimento que recebeu cerca de US$ 5 milhões em investimentos e contou com o envolvimento de 20 pessoas, entre cientistas, engenheiros, químicos e técnicos. Desde o início o objetivo era desenvolver plástico com as mesmas qualidades dos tradicionais, em termos de resistência, durabilidade e aplicação. Porém, feitos com matéria-prima renovável”, explica Gustavo Sergi, diretor de Químicos Renováveis da Braskem.

Hoje a cana faz parte do I’m green, um branding que engloba todas as resinas de fonte renovável da Braskem, considerando tanto as destinadas para a produção de produtos plásticos quanto vinílicos. “O portfólio I’m green conta com aproximadamente 30 itens nas famílias de PEAD (polietileno de alta densidade), PEBDL (polietileno de baixa densidade linear), PEBD (polietileno de baixa densidade) e EVA (acetato-vinilo de etileno) que cobrem uma ampla gama de aplicações. O selo I’m green deu visibilidade no mercado aos produtos e marcas líderes de empresas de diversos setores. Já existem vários exemplos nos segmentos alimentício, de higiene e limpeza, cosméticos, brinquedos e sacolas, entre outros”.

O Plástico Verde da Braskem pode ser encontrado em embalagens de alimentos, produtos de higiene e limpeza, pet food, cosméticos, bebidas lácteas, sacolas, tapetes para automóveis, grama sintética, fios e cabos, entre outros. Diversas empresas dos mais variados segmentos o utilizam. No Brasil, por exemplo, há Tetra Pak, Johnson & Johnson, Kimberly Clark, Natura, Pilecco Nobre, Nutrella, Neutrox, Tramontina, Boticário, L’Oréal, entre outros.

Estimativas apontam que até 2020 haverá um crescimento acima de 20% ao ano, quando o volume anual de vendas de biopolímeros, que chegaria a 8 milhões de t.

Atualmente, a Braskem possui parcerias com produtores de etanol nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná. A matéria-prima é 100% aproveitada. Os contratos preveem critérios de sustentabilidade, como cumprimento das diretrizes ambientais – especialmente as relacionadas no Protocolo Ambiental do Estado de São Paulo, da legislação trabalhista, da regulamentação que trata da redução de emissão de gases de efeito estufa.

A Braskem elaborou um documento de diretrizes chamado “Compra Responsável de Etanol”. Para que um produtor de etanol se torne um fornecedor da empresa, deve observar o comprometimento com as boas práticas empresariais definidas neste documento com relação às queimadas, respeito à biodiversidade, boas práticas ambientais, direitos humanos e trabalhistas, além de disponibilização de informação para análise de ciclo de vida do produto. A Braskem realiza auditorias nas usinas fornecedoras para assegurar o cumprimento das práticas descritas no seu Código de Conduta.

A última novidade divulgada pela Companhia foi a resina renovável. Sergi conta que a resina renovável de origem vegetal EVA (acetato-vinilo de etileno) é mais uma inovação Braskem e que integra o portfólio da marca I’m green. Além de ser aplicada no setor calçadista, pode ser usada em embalagens flexíveis e no setor automotivo, para os tapetes de automóveis, por exemplo.

O diretor de Químicos Renováveis da Braskem explica que todo polietileno (PE) é 100% reciclável. Como o PE Verde e o PE Convencional apresentam propriedades técnicas idênticas, eles terão igual tratamento no que diz respeito a reciclagem e decomposição. “A vantagem do PE Verde é ele ser produzido a partir de matéria-prima de fonte renovável e, por consequência, auxiliar na redução da emissão dos gases causadores de efeito estufa nas aplicações onde for utilizado”, conta.

LEGO A PARTIR DA CANA

A Lego, uma das maiores fabricantes de brinquedos do mundo tem em seus planos a ideia de fabricar todos os blocos de construção coloridos da marca a partir de plástico à base de vegetais provenientes da cana-de-açúcar. A medida faz parte do compromisso do Grupo Lego de usar materiais sustentáveis em produtos essenciais e embalagens até 2030.

Em agost

o de 2018, a empresa lançou os seus primeiros blocos sustentáveis feitos usando o novo material. Os novos elementos botânicos Lego Sustentáveis virão em formatos de folhas, arbustos e árvores. “No Lego Group, queremos ter um impacto positivo no mundo que nos rodeia e estamos trabalhando muito para criar ótimos produtos para crianças usando materiais sustentáveis. Estamos orgulhosos que os primeiros elementos Lego feitos de plástico de origem sustentável estejam em produção e estarão em caixas Lego. Este é um grande primeiro passo em nosso compromisso ambicioso de fabricar todas as peças da usando materiais sustentáveis ”, afirma Tim Brooks, Vice-Presidente de Responsabilidade Ambiental do Grupo Lego.

O polietileno vindo da cana-de-açúcar são idênticos aos produzidos com plástico convencional. Os elementos foram testados para garantir que o plástico à base de plantas atenda aos altos padrões de qualidade e segurança que o Lego Group tem, e os consumidores esperam dos produtos.

De acordo com dados divulgados pela Companhia, os elementos de polietileno a partir da cana-de-açúcar são ١% a 2% da quantidade total de elementos plásticos produzidos pelo Grupo Lego. A cana-de-açúcar usada é obtida de forma sustentável, de acordo com as diretrizes da Bioplastic Feedstock Alliance (BFA), e é certificada de acordo com os padrões globais para cana-de-açúcar de origem responsável. E todos os fornecedores devem cumprir o Código de Conduta do Grupo, que especifica requisitos rigorosos para os padrões éticos, ambientais e de saúde e segurança, com base nas principais diretrizes globais.

O BIOCYCLE

Há mais de 15 anos, a empresa PHB Industrial produz em escala piloto o Biocycle, um plástico biodegradável feito com açúcar-de-cana. Apesar de dominar a tecnologia, para fabricar diversos produtos com o polímero e para tornar seu custo competitivo quando comparado ao do plástico convencional, a empresa ainda não conseguiu elevar sua produção a uma escala industrial

O IPT (Instituto de pesquisas tecnologica) tem, desde 1992, um projeto apoiado pela Finep que visa desenvolver um produto de valor agregado a partir do açúcar da cana-de-açúcar. Segundo Maria Filomena de Andrade Rodrigues, integrante da Comissão Interna de Biossegurança IPT, a história do Biocycle começou no início dos anos 1990, época em que a Copersucar (Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo) procurava outros produtos que pudessem ser fabricados em uma usina de açúcar que não fossem commodities.

Desde 1999 a empresa começou a produzir em escala piloto. “A finalidade é a substituição do plástico convencional não biodegradável, principalmente em embalagens plásticas. A cana-de-açúcar é uma importante matéria-prima, fonte de energia que pode vir tanto do açúcar para a produção de etanol quanto outros produtos como o seu bagaço. Este pode ser queimado para a geração de energia e, caso seja hidrolisado, tem um potencial importante como matéria-prima de processos biotecnológicos”, conta Maria. “O mercado existe e nosso produto está pronto. O que falta é um canal para chegar ao mercado e um pouco mais de investimento”, acrescenta.

MAIS PRODUTOS, MAIS PESQUISA

Além do Biocycle, o IPT desenvolveu processos para a produção de enzimas, nutracêuticos, diferentes ácidos orgânicos e biopolímeros. “O açúcar da planta pode ser usado como matéria-prima para diferentes processos. No momento, temos um projeto que utiliza o açúcar da cana para o crescimento de fungos e bactérias para a geração de produtos de interesse comercial, mas não posso dar mais detalhes por conta de confidencialidade”, salienta.

Para ela, ainda existem vários desafios na produção dos produtos advindos da cana, desde questões de melhor produtividade da planta no campo até o seu aproveitamento total. “Do ponto de vista biotecnológico temos um grande desafio: o aproveitamento total da matéria-prima, desde a folha (palha) até o açúcar (sacarose) por meio de processos que sejam técnica e economicamente viáveis. Para isto, diversos estudos são necessários, envolvendo desde a questão de melhorar o rendimento do açúcar da cana em produto, a capacidade dos microrganismos em hidrolisar e consumir a sacarose e os processos enzimáticos para a hidrólise do bagaço”, finaliza

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