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Mercado

Consequencialismo na venda direta de etanol aos postos

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Etanol

Enrico Severini Andriolo e José Guilherme Costa

A conjunção de um gigantesco potencial agrícola, de uma inestimável riqueza ambiental e do desafio de desenvolver um país de dimensões continentais, tornam a indústria de biocombustíveis tão relevante quanto complexa no Brasil.

O debate no campo normativo e das políticas públicas sobre o etanol combustível remontam à última quadra do século passado, quando lançado o “Proálcool” (Dec. nº 76.593/75).

Capítulo mais recente aborda a possibilidade de produtores de etanol fornecerem diretamente para postos de combustíveis, como forma de redução de custos. O debate ganhou impulso no contexto da busca por medidas imediatas para redução dos preços dos combustíveis após a greve dos caminhoneiros, em 2018, quando CADE e ANP propuseram a avaliação do tema para atingir esse objetivo.

Todo o profícuo debate já realizado, especialmente no âmbito da Tomada Pública de Contribuições nº 2 da ANP, permite constatar que a venda direta do etanol não é medida simples como pode aparentar em uma análise superficial.

A busca por implementar, de forma ampla e viável, um combustível oriundo de matriz vegetal exige a conjugação de diversos fatores e sólida regulação, considerando as limitações físicas (zonas de produção) e temporais (safra) de comodities agrícolas. Tanto que o art. 238 da Constituição de 1988 indica a necessidade de tratamento normativo para tal atividade.

Essa discussão passa necessariamente pelo esclarecimento do verdadeiro papel das distribuidoras, que existem em diversos mercados, como alimentos e medicamentos, mas costuma ser mal apresentado, como meros “atravessadores”. No segmento de combustíveis constitui elo essencial para permitir o abastecimento, integrando diferentes agentes e regiões e assegurando a qualidade dos produtos.

Dentro do arcabouço normativo do tema, a configuração logística e fiscal do fornecimento do etanol remonta às suas origens, com o Decreto nº 82.476/78, e, ao menos no que tange ao fornecimento pelos produtores, permanece até hoje assim, como previsto na Resolução ANP nº 43/2009.

Elemento primário ensejador desse arranjo é a necessidade de estrutura logística robusta para atingir todas as regiões do país com oferta de produtos certificados. Para viabilizar esse objetivo audacioso é preciso atuação regulatória adequada que busque contornar eventuais lacunas naturais e também estimular o investimento dedicado. Este o espaço onde se inserem as distribuidoras.

A atual regulação mostra-se, portanto, necessária para permitir a exequibilidade da expansão do etanol em todo o país, como vem ocorrendo há várias décadas. A possibilidade de venda direta do produtor para o revendedor, baseada em suposta lógica de mercado, potencialmente irá restringir a oferta no plano espacial e temporal.

Poderia ainda comprometer outros elementos caros à sociedade, como o programa Renovabio, instituído pela Lei nº 13.576/17, direitos do consumidor e a arrecadação tributária concentrada do ICMS, em regra retido nas distribuidoras, e PIS/COFINS, retido parte na distribuidora e parte nos fornecedores.

Da mesma forma que a atual normatização vai ao encontro da estrutura logística necessária para a distribuição do etanol, também no plano tributário existe arcabouço estruturado para essa relevante atividade econômica. Como acima citado, os distribuidores são os substitutos tributários dos produtores de etanol no ICMS, concentrando grande parcela da arrecadação, cuja alíquota pode chegar a 30%, e representa significativa fração da receita estadual.

Em um primeiro momento, suprimir o elo da distribuição poderia de fato gerar uma redução do valor do produto final em alguns locais específicos, mas não se pode negar que pode acarretar efeitos negativos de longo prazo, tais como desincentivo aos investimentos logísticos, aumento de custos dos demais combustíveis e impactos na arrecadação conforme modelo tributário vigente.

Toda essa complexidade fática e jurídica exige uma apreciação consequencialista e multidisciplinar sobre a proposta de permitir a venda direta. Para os agentes públicos, essa avaliação já é compulsória nos termos do art. 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Atento justamente a esse aspecto, o Conselho Nacional de Política Energética — CNPE indicou, por meio de suas Resoluções 12/2019 e 02/2020, a diretriz de se manter a “isonomia concorrencial no aspecto tributário”.

O Judiciário igualmente precisa adotar postura crítica em face de pedidos oportunistas ou não sificientemente embasados para obter a liberação da venda direta sob argumentos aparentemente apelativos, como a crise econômica, mas que ao final apenas buscam um atalho para atender interesses isolados e desconexos com a amplitude da questão.

Enfim, diante da complexidade da política pública subjacente à produção e fornecimento de etanol, devem os atores envolvidos com o tema realizar efetiva avaliação consequencialista da medida, sobretudo nos aspectos consumeristas e tributário, conforme proposto pelo CNPE, mas também considerando outros elementos relevantes como o investimento logístico, o abastecimento e a qualidade e segurança dos produtos.

Esse movimento, à adequada luz que permite enxergar os porquês do atual sistema e os riscos da medida, precisa ser também conhecido e fiscalizado pela sociedade civil, destinatária e consumidora última dos combustíveis.

Não endereçar adequadamente algum desses relevantes elementos pode gerar um suposto apoio popular fundamentado em premissas equivocadas e um resultado final inverso do pretendido, com aumento de custos, perda de segurança para consumidores, comprometimento da arrecadação e mesmo redução do consumo do etanol.

Por: Enrico Severini Andriolo, advogado e gerente Jurídico de Regulatório e Societário da BR Distribuidora, com MBA em Distribuição de Combustível pela FGV. José Guilherme Costa, advogado e gerente Jurídico Tributário da BR Distribuidora, com MBA em Distribuição de Combustível pela FGV.

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