Agrícola
Irrigação, uma importante ferramenta a favor da produtividade dos canaviais
Estima-se que, em média, de 30 a 50% da produção potencial de cana-de-açúcar no Brasil é perdida todos os anos em decorrência de estresses hídricos mais prolongados no campo
Por Natália Cherubin
Você sabia que para cada tonelada colhida de colmos frescos de cana-de-açúcar é necessário que aproximadamente 100 m3 de água sejam utilizadas pela planta na evapotranspiração?
Então, quando dizem que a cana-de-açúcar é uma cultura de sequeiro é preciso deixar claro que ela necessita ser plantada em regiões com chuvas anuais de 1200 a 1500 mm para ser viável economicamente como cultivo de sequeiro, de acordo com o professor do Departamento de Engenharia de Biossistemas e Área de Hidráulica da Esalq/USP, Rubens Duarte Coelho. “As fases mais críticas em termos hídricos para esta cultura são plantio, estabelecimento inicial e perfilhamento de colmos”, explica.
A cana-de-açúcar é uma cultura cuja produção de açúcar não requer um período de florescimento como nas culturas de citrus e café, sendo assim, como explica Coelho, o estresse hídrico de curta duração no campo não gera perda significativa na produção de açúcar.
“Por isso que dizem que a cana-de-açúcar é resistente ao estresse hídrico no campo. No entanto, se este estresse hídrico se perdurar por muito tempo, a queda de produtividade poderá ser significativa. Estima-se que, em média, de 30 a 50% da produção potencial de cana-de-açúcar no Brasil é perdida todos os anos em decorrência de estresses hídricos mais prolongados no campo”, afirma Coelho.
Dados do último levantamento da Conab (Companhia Nacional do Abastecimento) para a safra 2022/23, mostram que a expectativa é de que a média do TCH do Centro-Sul atinja 73,89 t/ ha, um ganho de aproximadamente 2,57% se comparado com a última temporada (2021/22), quando a média de TCH atingiu 71,41. A queda do TCH da atual safra comparada a safra 2020/21 é ainda maior, pois naquela temporada o setor chegou a recuperar a produtividade e teve uma média de 78 t/ha, valor mais próximo da melhor em dez anos, quando o setor atingiu 80,2 t/ha de média, em 2015/16.
Longos períodos de estiagem, ocorrência de incêndios, geadas e até mesmo uma redução na capacidade de investimento por parte de usinas e produtores em tratos culturais e tecnologias, foram alguns dos fatores que levaram a essa queda na produtividade. De acordo com Daniel Pedroso, engenheiro agrônomo e especialista da Netafim, em algumas macrorregiões houve relatos de quebra sobre a produtividade em até 30%.
“A cana-de-açúcar possui um potencial produtivo de aproximadamente 400 toneladas por hectare. A produtividade média dos canaviais brasileiros hoje tem atingindo algo em torno de 77 t/ha, ou seja, o Brasil produz apenas 19% de todo potencial genético da cultura. E de onde vem essa redução tão grande? Não sabemos nutrir a cultura? Não entendemos de variedade? Não sabemos controlar pragas? Ou não investimos em irrigação e por isso somos dependentes do clima? Sabemos que dos fatores de influenciam na produtividade, 50% estão relacionados ao clima”, explica Pedroso.
Irrigação como aliada no manejo da cana
A cana-de-açúcar, por ser uma gramínea é altamente responsiva a água. Devido a isso, segundo Pedroso, no período de estresse hídrico – momento o qual já se iniciou nesta safra 2022/23 – a planta diminui, e muito, o seu desenvolvimento vegetativo.
“Mesmo que estejamos nos aproximando de meses mais frios, precisamos lembrar que entre os meses de Abril a Maio e depois entre os meses de agosto a outubro, os canaviais possuem alto potencial de crescimento que fica limitado pela estiagem característica desse período”, afirma o especialista da Netafim.
Mas como a reposição de água com auxilio de sistemas de irrigação pode auxiliar usinas e produtores a evitar a redução da produtividade de seus canaviais em casos de longos períodos de estiagem? Para Pedroso, a água de irrigação deve ser vista como um insumo de produção. Por isso, assim como a água é fundamental para o desenvolvimento de qualquer ser vivo, com a cana-de-açúcar não seria diferente.
“Irrigar de maneira consciente através de critérios e decisões baseadas em dados é de fundamental importância para evitar a redução na produtividade dos canaviais. Ou seja, irrigação é diferente de molhação. Molhar é simplesmente ligar o sistema e aplicar água sem nenhum parâmetro técnico. Irrigar é manejar a água (que é um insumo) de maneira a atender a necessidade da planta sem que com isso haja desperdícios”, destaca.
Segundo Fábio Ricardo Marin, professor do Departamento de Engenharia de Biossistemas da Esalq-USP, o setor teve duas safras complicadas com um período de seca bastante intenso a partir de 2021 e sem chuvas no verão de 2020 para 2021. “Isso que explica a safra tão ruim. Essa ausência de chuvas é o que explica essa produtividade tão baixa”, diz.
Ainda de acordo com ele, o sistema TempoCampo da Esalq conseguiu detectar isso desde o início da safra 2021/22, reportando perdas severas. “Numa condição igual a essa, a resposta da planta a irrigação é excepcional, pois tivemos temperatura acima da média, uma radiação excelente e o que faltou mesmo foi a água. Os canaviais irrigados produziram muito bem”, adiciona.
Mas e se o regime de chuvas voltar ao considerado “normal”, compensa irrigar? A volta ao normal climático na região Centro-Sul é um cenário bastante otimista. Diversos estudos indicam que as mudanças climáticas irão impactar a produção agrícola nacional, segundo o professor do Departamento de Engenharia de Biossistemas e Área de Hidráulica da Esalq/USP.
“A análise de dados climatológicos dos últimos 10 anos em diversas áreas de produção de cana-de-açúcar na região Centro-Sul, evidenciam as alterações nos padrões de chuvas, principalmente no período mais seco do ano. Temos feito estudos para diversos municípios desta região e constatamos estas alterações ao longo dos anos em diversos locais”, adiciona Coelho.
A cana-de-açúcar, via de regra, necessita de 1.100 a 1.500 mm anuais de chuva razoavelmente distribuídos para seu desenvolvimento adequado. Durante o crescimento e desenvolvimento vegetativo, a demanda por água é maior. Já na maturação o ideal é que haja menos chuvas para ocasionar a redução do alongamento dos internódios e aumento no teor de sacarose nos colmos.
Com isso, de acordo Ricardo Pinto, CEO da RPA Consultoria, não adianta o volume anual de chuvas desejado acontecer se não for na distribuição que se deseja. Ambos os requisitos devem ser atendidos.
Por exemplo, se faltar chuvas ou chover menos do que o ideal na fase de germinação e perfilhamento, haverá atraso na brotação e ocorrerá menor número de perfilhos da cana. Paralelamente, falta ou menos chuvas na fase de crescimento vegetativo e início da colheita implica em redução na taxa de alongamento dos colmos.
“Logo, para que haja chuvas no volume e na hora desejados pela cana-de-açúcar para seu desenvolvimento ideal (e produtividade potencial), precisa haver uma ‘mecanização das chuvas’, conhecida também como irrigação”, afirma.
Coelho diz que houve implantação de sistemas de irrigação na cultura de cana-de-açúcar em várias regiões do Brasil nos últimos 15 anos e que só não irriga quem não tem água disponível ou recursos financeiros para bancar a implantação destes sistemas, pois a resposta agronômica e viabilidade financeira já é comprovada nas regiões mais sujeitas ao estresse hídrico de longa duração.
Para Pedroso, mesmo em anos normais, na região Centro-Sul, o regime de chuvas é definido por meses de estiagem que começam em abril e vão até meados de novembro, ou seja, são aproximadamente seis meses com baixos índices pluviométricos.
“Mesmo nesse período a canavial possui desenvolvimento, principalmente nos meses de agosto a outubro. E é onde ocorre a queda de produtividade. É de conhecimento comum que os canaviais colhidos em meio a final de safra são menos produtivos, e o motivo está no acúmulo do déficit hídrico, ou seja, na falta de água. Irrigar os canaviais, principalmente os de meio e final de safra é elevar a sua produtividade e, com isso, uniformizar a disponibilidade de matéria-prima para indústria”, salienta Pedroso.
De acordo com Marin, a irrigação é uma importante ferramenta, mas é preciso lembrar que mais do que a água, a cana precisa, para seu pleno desenvolvimento, também de radiação e temperatura.
“A irrigação traz estabilidade produtiva. Com ela não se tem anos de baixa e alta. Com ela é possível manter o TCH em um nível médio. Mas é importante destacar que o investimento em irrigação demanda investimentos também em termos de manejo. Você não pode fazer o mesmo manejo nutricional, de daninhas e pragas que faz no manejo de sequeiro”, adiciona o professor.
Além disso é preciso avaliar muito bem a viabilidade econômica da irrigação. O estudo de viabilidade não pode ser feito pensando apenas nos anos mais secos, porque em anos mais chuvosos, a resposta da irrigação não é igual. É preciso, de acordo com Marin, fazer uma análise considerando uma série histórica, o mais longo possível, considerando tempo seco, anos úmidos e fazendo uma média para decidir se os investimentos valem a pena.
“Tem que se considerar os fatores de crescimento da cana como a radiação, a temperatura e as chuvas. Se tem radiação e temperaturas muito boas, você pode ter uma boa produtividade, se tiver disponibilidade de água. Não é só a chuva que tem que ser levada em conta. Por isso, usamos uma ferramenta chamada Modelagem Baseada em Processos. Esses processos são os fisiológicos, porque temos que estimar o quanto a cana cresce em condição de sequeiro, em condição irrigada e comparar esses valores”, explica.
A conta básica de custos para a irrigação é, segundo o professor, obter o delta de produtividade, entre irrigado e sequeiro, que multiplicado pelo preço da tonelada da cana pague o investimento da irrigação.
“Em cada local, em função do clima, teremos uma resposta diferente. Isso não é uniforme no Centro-Sul. Tem região que vai subir 30 t/a e tem região que vai subir 5 t/ha. Por isso que esse estudo precisa ser muito bem feito. Por isso usamos modelos para fazer as análises. Vamos produzir mais do que 20 mil reais por hectare? Se a resposta for sim, você pode, por exemplo, investir num sistema de gotejamento”, explica Marin.
A Esalq desenvolveu o sistema Tempo Campo que é uma ferramenta que pode fazer esse tipo de análise e que pode fazer essa estimativa. É um projeto de extensão que funciona na Esalq e dá assessoria a muitas empresas do segmento de cana em diversos aspectos. Esse aspecto de viabilidade econômica é um deles. Hoje, o projeto faz revisão de safra, só que projetando quanto que a usina vai conseguir produzir antes mesmo de colher. Assim, os produtores ou usinas podem fazer seus levantamentos de custos, seu orçamento ou venda de produtos no mercado futuro e fazer estimativa de caixa para a usina.
Como saber que tipo de irrigação adotar?
Além do estudo de viabilidade, é preciso conhecer a característica de cada sistema de irrigação, independente de qual seja, e entender qual desses sistemas proporciona o manejo que água que necessitamos, segundo o planejamento.
Coelho explica que é preciso planejar as lâminas de água de forma a obter máximo retorno em TCH e retorno financeiro do investimento no sistema de irrigação.
“É preciso fazer um estudo detalhado para cada localidade, levando em consideração as séries históricas de dados climatológicos, de dados de retenção de água dos solos, variedades e épocas de plantios. Uma coisa é certa: não é possível irrigar todas as áreas de plantio de uma usina concebida em agricultura de sequeiro. Deve-se priorizar as áreas mais propícias e responsivas aos sistemas de irrigação. Caso a usina gere a própria energia elétrica para acionamento dos motores de irrigação, a viabilidade econômica aumenta muito, pois grande parte do custo anual da irrigação é devido à energização do sistema”, acrescenta.
O cálculo da lâmina de irrigação é feito com base na eficiência do sistema de irrigação a ser utilizado, no estudo probabilístico de evapotranspiração de referência e no estudo probabilístico de balanço hídrico sequencial. Segundo Coelho, o nível probabilístico a ser adotado em projeto situa-se entre 60 e 85 % de probabilidade de ocorrência.
Pedroso observa que, para canaviais colhidos em início de safra, onde há pouco déficit hídrico, uma irrigação por salvamento já seria o suficiente para evitar a queda da produtividade. Logicamente que tipo de irrigação leva consigo todas as suas características, como alto Opex, irrigação somente no estádio inicial da cultura, baixo Capex, entre outros.
“No entanto, se o planejamento da usina ou fornecedor for colher canaviais em meio ou final de safra, onde o déficit hídrico é maior, ele necessitará de um equipamento que possibilite a irrigação em todo ciclo da cultura. Neste caso, sem dúvidas, optará pela irrigação plena. Nesse tipo de irrigação, o gotejamento se destaca. Sendo assim, todas as irrigações são válidas e proveitosas, o único fator decisivo de qual sistema de irrigação utilizar vai depender de planejamento e do objetivo que temos em mente”, destaca Pedroso.
Podemos dividir a irrigação em três métodos: superficial, aspersão e localizada. Quando falamos em irrigação por aspersão, há algumas perdas que ocorrem como, por exemplo, a evaporação, a deriva por ventos e o efeito “guarda-chuva”, que é a retenção da água pelas folhas da plantas.
“Fato que não ocorre na localizada (gotejamento), por isso é conhecida como a irrigação mais eficiente. Além disso, podemos utilizar a água de irrigação do sistema de gotejamento como um meio de transporte e fornecer para a planta, de maneira eficiente, nutrientes, proteção contra pragas e doenças”, destaca Pedroso.
Para Coelho, a irrigação por gotejamento enterrado tem o potencial de ser o sistema mais eficiente no uso da água, pois não molha a folhagem das plantas e nem o mulching sobre o solo, tampouco apresenta perdas por evaporação e deriva, porém é preciso garantir que o sistema seja bem projetado, instalado e operado, para que não ocorram problemas de entupimento dos emissores no campo, o que poderá diminuir significativamente a eficiência deste método de irrigação.
“Existem já vários manejos de colheita que já são usados pelas usinas para reduzir os impactos por estresse hídrico. No entanto, muitas vezes o operacional das unidades não consegue colocar em prática. Com a irrigação vale o mesmo, o operacional tem que estar muito redondo, se não ele vai ter custo a mais e não vai conseguir tirar proveito. A irrigação não é bala de prata, por isso é preciso ter bom planejamento”, conclui Marin.
A afirmação de que a cana-de-açúcar é uma planta rústica e por isso não precisa de muita água ou de irrigação É UM MITO
Vinicius Bof Bufon, pesquisador da Embrapa Cerrados, diz que esse mito, inclusive, já foi utilizado como argumento recorrente no início da produção irrigada de diversas culturas que hoje fazem amplo uso da irrigação no País, como o café e a laranja.
“Talvez, se compararmos a cana com algumas outras culturas, podemos dizer que essa afirmação é verdadeira, já que a cana precisa de menos água para sobreviver”, afirma.
Contudo, no contexto da produção comercial, o objetivo não é a mera sobrevivência da planta. Ao contrário, um sistema de produção sustentável precisa ofertar as melhores condições para que a cultura entregue o melhor de seu potencial genético e seja o mais eficiente possível.
Por isso, não basta que a cana sobreviva. É fundamental que ela entregue a maior produção com a menor quantidade de recursos possível. Vale ressaltar que, quando historicamente produzida somente no litoral e no bioma Mata Atlântica, a produção de cana brasileira estava, de fato, em um ambiente onde a oferta hídrica era abundante e bem distribuída ao longo do ano. Mesmo nesses ambientes, com certa frequência, anos mais secos traziam impactos muito negativos para produção e sustentabilidade dos negócios.
Com o passar dos anos, e por diversas razões técnicas, logísticas, econômicas e sociais, as lavouras foram migrando para o bioma Cerrado – inicialmente em São Paulo e depois para Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e até o Pará.
Hoje, aproximadamente 50% da cana-de-açúcar do País já é produzida no Cerrado e essa proporção cresce anualmente. Como é sabido, o Cerrado é caracterizado por uma estação seca que pode durar de 4 a 7 meses. Nesse ambiente, não somente o desenvolvimento da planta é tremendamente reduzido, mas também o vigor da brotação da soqueira, resultando em drástica redução da longevidade dos canaviais.
Outro aspecto que vale a pena esclarecer é que, de fato, seguindo a lógica da Lei dos Mínimos de Liebig, o fator de produção mais restritivo pode não ser a água em um contexto de baixíssimo aprimoramento tecnológico e de gestão. Mas, convenhamos, hoje a realidade do setor sucroenergético nacional é muito diferente daquela de 40, 50 anos atrás.
As empresas que têm sobrevivido às crises, que têm tido sucesso nos negócios e crescido, são justamente aquelas que têm aprimorado os manejos varietal, de fertilidade, de ervas-daninhas, fitossanitário, sem falar na grande mudança da colheita manual de cana queimada para colheita mecanizada de cana crua, e tantos outros aprimoramentos tecnológicos e gerenciais.
Com isso, a água, que já era o principal fator de produção, passou a ganhar ainda mais relevância. Afinal, à medida em que se aprimorava os outros fatores de produção, a canavicultura foi migrando para regiões com oferta hídrica cada vez mais escassa. E por que não dizer ainda dos desafios trazidos pelas mudanças climáticas globais, que podem resultar em eventos de seca cada vez mais severos e frequentes para regiões onde a restrição hídrica não era tão limitante? Por essas razões, dizer que a cana-de-açúcar, por ser uma planta rústica, não precisa de irrigação é sim um mito.
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