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Produtividade, longevidade e fidelidade: os desafios do setor sucroenergético

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Produtividade e longevidade são termos batidos no setor sucroenergético. Em alguns momentos, inclusive, chegam a ser uma tara. Ou vai falar que você nunca ouviu o termo “cana de três dígitos” em algum evento técnico que foi? Particularmente, acho isso engraçado, uma tara mesmo. Com as tecnologias que temos, alcançar os “três dígitos” na cana é fácil. Difícil, é fazer dar dinheiro junto. Ou seja, além das altas produtividades, ser competitiva economicamente e compensar os investimentos. Mas isso é papo para outro artigo.

Fidelidade, também, pode ser considerado um dos principais desafios do setor. Explico. Com cana spot batendo, na safra 22/23, 160 kg fixo de ATR por tonelada ou 200 R$ por tonelada – o que der mais no final da safra – e com pagamento, muitas vezes, de 50% na assinatura do contrato, como é que segura produtor de cana no contrato? E vou além. Com grãos beijando patamares históricos, com soja a 170 R$/sc e milho a 70 R$/sc, como é que segura produtor de cana em cana? Aliás, tá difícil de segurar até arrendamento para cana.

Um patamar de valores que assusta, mas é real. Evidente que não para o setor sucroenergético como um todo. Ele é mais intenso em regiões onde a relação “oferta e demanda de cana” é mais aguda. A popular faixa de Gaza do setor, em geral, demarcada pelos entornos do eixo Preto, indo de Ribeirão até São José do Rio. O problema é que essa faixa se ampliou da última safra para cá, podendo-se incluir as regionais Araçatuba, Presidente Prudente e Assis na “zona de guerra da cana”.

O grande catalizador dessa situação foi, sem dúvidas, a paulada que o setor levou em termos de produtividade na safra 21/22 e as heranças para esta, 22/23. Ou seja, a demanda é a mesma, a oferta, nem tanto, sobe o preço. Qualquer atividade econômica é assim. E todo esse choque de oferta, claro, temperado pelo momento tentador dos grãos. O mercado sobe, a cana spot explode, o raio de captação aumenta, o cara que está sob contrato, com razão, fica puto e por aí vai. A merda tá feita.

Como resolver esse problema? Eu não sei. E acho que não há solução única, universal. O setor é cheio de particularidades. Inclusive, essa pauta é uma particularidade. A turma da cana de Goiás, Mato Grosso, Paraná, Minas, como coloquei um pouco antes, não sofre essa dor. Mas, as dores da competição de grãos deles são mais fortes. Então, peço um pouco de cuidado na interpretação de alguns pontos. Ainda assim, dado as rodadas por aí, é possível tecer alguns comentários.

Qualquer atividade econômica, além da oferta e demanda, é regida pela relação de risco e retorno. Quanto maior o risco, maior o retorno. E vice e versa. Cana não é diferente. Cana spot tem maior retorno? Sim. Mas também, tem maior risco. Safras, por exemplo, de maior oferta de matéria-prima, o spoteiro tem que chupar a cana. Sinceramente, estou com saudades dessas safras. Nos últimos anos, é só vaca magra em termos de produção.

Nas oportunidades que tenho em dar pitacos na temática, minhas sugestões, em geral, vão no sentido de montar uma estratégia ligado ao apetite por risco. Uma resenha a la assessores de investimento, sabe? Qual seu perfil: conservador, moderado ou arrojado? (neste momento, me imagem dando risada enquanto eu escrevo). Arrojado até levar a primeira entubada. Bom, você nunca vai acertar o olho da mosca. Ninguém acerta tudo. Ninguém trava toda soja a 180 R$/sc. Ou o milho, ou a cana, o que for, em patamares 100% maravilhosos. O ideal é mirar no ângulo, mas, sobretudo, acertar o gol. E lembrar, evidente que tem risco. Por isso que chama negócio. Se não, chamaria certeza.

Um segundo ponto, que parece tão óbvio, mas que na prática parece não ser tão obvio assim é: cana-de-açúcar é casamento, grãos é namoro. Não tem como passar a mesma régua para ambos. A visão de estratégia é completamente diferente. São culturais anuais. Veja, ANUAL. Horizonte de ANO, com ciclos mais curtos, possibilidades de mudanças mais rápidas. Planta conforme o mercado. Vende antecipado. Estoca. É outra pegada. É um barco a ser direcionado conforme a maré.

Cana não tem nada a ver com isso. É cultura perene. Por isso que digo que é casamento, no mínimo noivado. É uma atividade que é complicado avaliar momento. Afinal, não é momento, é um troço de 5, 6… 10, 15 anos. Não é possível realizar grandes movimentos de uma hora para outra. Diferente do barco, é um transatlântico. Dá para virar conforme a maré? Dá, mas, é outra história quando se compara ao barco.

E essa questão da linha do tempo, de como o negócio se comporta ao longo dos anos, vai muito além da competição com grãos. Diria que esta é uma dor mais recente, que começou a incomodar de uns tempos para cá. A grande dor, aquela que incomoda há tempos e vem sendo pouco cuidada, diz respeito ao relacionamento, safra pós safra, entre produtores e usinas. Algo que vai além das defasagens do modelo de remuneração de cana. É mais que isso. É como construir um relacionamento sinérgico, olhando um horizonte de tempo maior, fidelizando a relação, a fim de evitar efeitos colaterais como os que estamos vivendo. Ausência de contratos e forte presença de cana spot são evidências desses efeitos.

Em mais uma analogia – você já deve ter percebido que gosto delas – é a realização de exercícios para tratar essa dor. Se continuarmos dando uma “corridinha” de vez em quando, só quando as coisas apertam, não conseguiremos resolver o problema. O exercício deve ser contínuo, sistemático.

Aí sim construiremos um relacionamento perene, assim como a cultura da cana deve ser.

 

 

*João Rosa (Botão) é engenheiro agrônomo e diretor do Pecege Projetos

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