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Edição 193

Tecnologia Industrial – Uma usina de oportunidades

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Especialista fala sobre o grande potencial que ainda precisa ser explorado pelo setor nas suas indústrias

* Daniel Atala

Estudando o setor sucroenergético por quase 20 anos, sempre atuando com Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P, D&I), ao olhar para uma usina vejo um mundo de oportunidades a serem exploradas. Tenho convicção que cada um que está no setor tem a sua própria forma de ver e identificar gargalos e oportunidades e que estes certamente refletem e/ou são impactados por sua realidade. Neste sentido, o que proponho nestas linhas é apresentar um pouco da forma como eu enxergo este “ouro verde” que é a cana-de-açúcar e o gigantesco potencial a ser explorado, instigando o senso crítico dos leitores com argumentos para reflexão, questionamentos e, quem sabe, pensar como transformar de fato essa usina de oportunidades.

Não é de hoje que vejo figuras importantes do setor e do meio acadêmico afirmarem que vivemos uma estagnação inovativa e que a curva de evolução tecnológica está em um patamar de estabilidade. Posso até concordar com partes desta afirmação, mas o que não podemos fazer é nos acomodar e achar que não há nada a fazer. As evoluções e incrementos lógicos e triviais já foram implementadas praticamente em sua totalidade e a nova onda de inovações demandará esforços e investimentos em PD&I (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação).

O diagrama da Figura 1 apresenta um esquema clássico da parte industrial de uma usina processadora de cana-de-açúcar produzindo açúcar, etanol e eletricidade. Por si só, poderíamos abordar o fato das diversidades e do não consenso, como é o caso das famosas questões “Difusor versus Moenda”, “Fermentação Batelada versus Contínua”, “Caldeira de 66 ou 100 bar” e “Destilação MEG ou Peneira Molecular”, entre tantos outros pontos.

No entanto, queremos propor uma análise de oportunidades considerando três cenários: curto, médio e longo prazo. No curto prazo, o que já temos batendo em nossas portas? Em nossa visão, temos três itens de grande impacto como o etanol de milho, o biogás (biodigestão dos resíduos agrícolas) e o uso da cana-energia.

Figura 3: Rosca alimentadora (Daniel Atala/CTBE/CNPEM)USINAS FLEX E BIOGÁS

O etanol de milho já é uma realidade no Brasil e recentemente foi inaugurada uma grande fábrica em Lucas do Rio Verde, MT, usando tecnologia similar à encontrada em solo norte-americano, hoje maior produtor global de etanol. Quando se olha o processamento integrado de cana e milho, os pontos de integração e de sinergia alteram em cada site e trazem benefícios específicos. Os aspectos mercadológicos do milho, neste caso, podem limitar o número de usinas integradas (processando cana e milho), embora aumente o range operacional e o mix produtivo.

A biodigestão dos resíduos agrícolas como a vinhaça e a torta de filtro é uma realidade muito próxima. Como de conhecimento público, a Raízen vendeu, no último leilão, energia elétrica de biogás obtido da biodigestão da vinhaça e da torta de filtro de uma de suas unidades, para produção em 2021. Outros grupos também navegam nesta onda e o grande ponto é entender as oportunidades disponíveis. Muitas usinas da região Centro-Sul estão muito próximas ao gasoduto Brasil-Bolívia. Segundo levantamento feito pela Secretaria de Energia e Mineração do Estado de São Paulo, 66 usinas estão a menos de 20 km de distância do gasoduto, o que traz um grande potencial para injeção na rede e uso distribuído dentro do sistema. Também há a possibilidade de uso do biometano como substituição ao combustível, movimentando máquinas agrícolas, caminhões e frota leve. Estima-se que o volume produzido de biometano por uma única unidade consiga suprir toda a demanda interna sendo o excedente exportado ou usado em outras usinas próximas, por exemplo. O resíduo líquido e sólido deste processo (liquefértil e solidofértil) apresentam as mesmas características nutricionais que a vinhaça e a torta de filtro, porém, sem a parte orgânica, o que reduz os impactos ambientais de emissão gasosa.

Do lado da eletricidade de biogás, o sistema baseado em biodigestão e motogeradores apresenta uma eficiência elétrica muito maior que o sistema caldeira e turbina. Este excedente elétrico poderá ser fornecido à rede desde que haja garantias para a sua comercialização como ocorrem nos leilões, sendo que aspectos na rede de distribuição de energia podem impactar ou contribuir para a tomada de decisão.

A parte térmica poderá ser integrada à unidade existente trazendo excedente de biomassa que poderá ser usada para outras finalidades, como extensão de safra ou mesmo na produção de etanol de segunda geração. Para a produção de biometano é necessária uma etapa de purificação deste biogás que não é simples nem barata, embora existam tecnologias para isso. Se não se estabelecerem políticas de incentivo e preço competitivo, esta iniciativa pode nem sair do papel. O protocolo de boas práticas assinado entre a Unica e o Governo do Estado de São Paulo no último Ethanol Summit tem implicações sobre o aproveitamento dos subprodutos da cana-de-açúcar; aliado com os aspectos ambientais e de incentivos do RenovaBio, podendo impulsionar este tema de modo impactante para o setor e economia.

CANA-ENERGIA NA INDÚSTRIA

O canavial também tem passado por uma revolução e, entre os pontos de destaque, temos a aprovação comercial da primeira variedade de cana transgênica do mundo (CTC) e a cana-energia. No primeiro caso, a grande questão será a sua aceitação no mercado uma vez que entrará na discussão se o açúcar e/ou etanol são transgênicos ou não, o que pode se traduzir em uma barreira tecnológica para mercados internacionais e mesmo nacional. No meu ponto de vista, isso é uma questão de tempo uma vez que hoje comercializamos milho e soja transgênica. Do lado da cana-energia, esta biomassa entra como a grande vedete da vez, prometendo significativos ganhos de produtividade por hectare (duas a três vezes mais que a cana-de-açúcar), com baixo custo de trato agrícola, de plantio e com tempo de ciclo maior (10 anos para renovação do canavial contra cinco da cana-de-açúcar). Tudo isso com produção crescente, uma vez que a cana energia perfilha mais do que a cana-de-açúcar.

Em um primeiro momento, o elevado teor de fibra que apresenta a cana-energia direcionou o uso desta biomassa para a queima em caldeiras, mas dada a sua alta produtividade, a quantidade equivalente de açúcar por hectare se iguala ou supera a relação obtida pela variedade de cana normal. Até aqui, ótimo, mas a questão toda é saber ou prever quais serão os impactos em seu processamento industrial.

Questões como a moagem 100% com cana-energia ou mix cana-energia + cana-de-açúcar, impactos na extração em difusor ou moenda, entre outros, certamente voltarão à pauta. Uma preocupação geral é o fato de até então não ser possível a cristalização dos açúcares provenientes da cana-energia devido, principalmente, à sua composição rica em açúcares redutores (glicose e frutose). Mas uma tecnologia desenvolvida pelo CTBE/CNPEM vem quebrar este paradigma. Isto porque, os pesquisadores do Laboratório conseguiram cristalizar, em escala de bancada, o caldo da cana-energia simulando uma operação integrada ao processo existente obtendo cristais de açúcar com características similares aos atuais. Extrapolando para outras culturas, esta mesma tecnologia poderá ser aplicada para a cristalização de caldos de sorgo sacarino e/ou sorgo etanol aumentando o range operacional do site.

O Brasil se comprometeu a reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e 43% até 2030, quando comparados aos níveis de emissão de 2005. Além disso, o compromisso prevê que a participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional totalize 18% em 2030. Para atender esta demanda, a produção de etanol do Brasil deverá praticamente dobrar, saltando dos atuais 28 bilhões de l para 54 bilhões de l. Neste contexto, o adensamento de área de canavial com a incorporação da cana-energia, bem como a incorporação de tecnologias que aumentem a produtividade, possibilitando, por exemplo o etanol lignocelulósico, tendem a se tornar realidade em um futuro próximo.

INDUSTRIA 4.0

Dentro do contexto da Indústria 4.0 e da internet das coisas (IoT), nasce o conceito da Usina 4.0. Muitas unidades apresentam hoje um excelente nível de automação e controle de processos, mas os parâmetros e variáveis controladas e manipuladas se restringem à vazão, temperatura, nível e pressão, por exemplo, e não a indicadores de performance e eficiência. São raros os exemplos onde há uma malha fechada para o controle da eficiência da extração, eficiência da caldeira, perfil em tempo real de fermentação, entre outros.

O que explica a ausência de controles de KPIs (Key Performance Indicator) de processos e a ausência de sensores analíticos que forneçam informação em tempo real de como a composição dos açúcares e produtos na fermentação, fibra, pol, AR e ART na extração, umidade e outros? Para não cometer injustiças, existem sim alguns tipos de sensores como os NIRs (Infravermelho Próximo), mas que demandam elevados investimentos e tempo para o desenvolvimento de curvas de calibração. O desenvolvimento de sensores analíticos robustos e baratos, baseados em fibras óticas, capacitância, resistivo, análise de injeção em linha (FIA – Flow Injection Analysis), NIRs, língua e/ou nariz eletrônico e os sensores virtuais (Soft-Sensors), entre tantos outros, poderiam alavancar o conceito da Usina 4.0.

Em uma visão desta usina inteligente, as informações de performances e desempenhos de processos trafegariam, em paralelo com a rede industrial, para um sistema de Data Storage que alimentaria a tela do operador (dado bruto ou tratado) para a tomada de decisão. Uma vez disponibilizada esta informação, malhas de controles baseados em indicadores de processos seriam estabelecidos, usando ou não estratégias de controle avançados.

USINA VIRTUAL

Em paralelo, pode-se integrar a esta arquitetura a possibilidade de realizar antecipações e previsões de cenários produtivos e operacionais, através de uma modelagem do processo industrial (Usina Virtual), usando, para isso, softwaresespecíficos como o Aspen. Este mesmo simulador do processo (Usina Virtual), alimentaria planilhas de controle operacionais (Excel), facilitando a interface entre o modelo desenvolvido e a informação desejada, padronizando, assim, a informação nos mais diversos níveis gerenciais e operacionais. Com a Usina Virtual, programas de treinamento de pessoas poderiam ser desenvolvidos com o objetivo de aumentar a capacitação do corpo técnico tal como ocorre no treinamento dos futuros pilotos de aviões em simuladores de voos.

A Usina 4.0 não é ficção cientifica e está mais próxima do que podemos imaginar. Pesquisas realizadas pelo CTBE contribuem para o desenvolvimento de sensores analíticos de processos, na Usina Virtual, no controle avançado de processos e na interface destas informações nos mais diversos níveis operacionais conforme apresenta a Figura 2.

USINA 365

O período de moagem de uma usina da região Centro-Sul depende, dentre outros fatores, da capacidade de moagem. A real necessidade da realização de uma entressafra longa traz uma grande oportunidade a ser desenvolvida e explorada. O que limita a operação de uma usina durante o ano todo? Certamente todos já fizeram esta pergunta e a questão da matéria-prima é a grande impactante neste ponto. Não podemos esquecer que há também a necessidade de se fazer a manutenção das instalações industriais. Mas é de fato necessária a realização desta manutenção de entressafra?

O CTBE/CNPEM vislumbra uma solução tecnológica que vem de encontro com o conceito da operação o ano todo, o qual denominamos Usina 365. Por questões de propriedade intelectual e por ser uma solução embrionária que necessita de maior aprofundamento tecnológico, não apontaremos detalhes por enquanto, mas há uma grande expectativa para que esta ideia venha a se tornar realidade no médio prazo.

Com isso, precisamos identificar matérias corretas para minimizar drasticamente a necessidade da manutenção de entressafra. Como exemplo, o CTBE possui em sua Planta Piloto de Desenvolvimento de Processos (PPDP) um equipamento para a realização de pré-tratamento contínuo do material lignocelulósico (biomassa). Este equipamento possui uma rosca transportadora que alimenta a biomassa da temperatura e pressão ambiente para um sistema pressurizado e com elevada temperatura. Na rosca da esquerda, como mostra a Figura 3, observamos uma peça nova e, ao lado, uma peça com 300 horas de operação. O nível e intensidade do desgaste de material é grande e inaceitável. O metal usado na confecção desta peça é nobre e com um revestimento de proteção que teoricamente deveria aumentar sua resistência. Este é um típico caso de material errado que deve ser estudado e compreendido. Precisamos investigar as características de abrasão e corrosão que a biomassa traz ao sistema.

Desenvolver ligas metálicas que incorporem estas características intrínsecas da biomassa, bem como as impurezas e os atributos de seu processamento tem impactos importantes e significativos na manutenção de entressafra. As lições aprendidas, neste caso, podem ter impactos e reflexos em toda a cadeia produtiva da usina. Uma vez de posse do material e das ligas corretas, devemos perguntar se o processo em questão é o mais apropriado para a finalidade proposta.

Não adianta insistir ou continuar com o processo “errado”, pois teremos no máximo uma extensão da operação. Neste sentido, há ferramentas que permitem a realização de prototipagem virtual, que envolve análise de elementos finitos e estruturais, análise de partículas e da fluido dinâmica do processo. É comum, encontrar no ambiente produtivo, equipamentos e processos que foram projetados e dimensionados baseados no empirismo, em tentativa e erros e em projetos desenhados para outros produtos. Atualmente, o CTBE/CNPEM possui uma infraestrutura para a prototipagem virtual de processos agroindustriais na qual a biomassa a ser processada é devidamente caracterizada e incorporada ao banco de dados do programa. Desta forma, na prototipagem virtual de equipamentos industriais e agrícolas leva-se o processo e o projeto a condições operacionais extremas (stress) com o objetivo de se encontrar falhas de concepção, pontos de gargalos, resistência mecânica e de estresse dos materiais construtivos, além da possibilidade de identificação de pontos críticos de transferência de massa e enérgica, tornando mais assertiva a construção do protótipo para validação em campo e experimental.

Com as visões e percepções descritas neste artigo, não é difícil imaginar que uma usina produzirá, além do açúcar, do etanol, da bioeletricidade, do biogás e/ou do biometano, outros produtos de igual importância dentro do conceito da Bioeconomia e Biorrefinaria. Programas de Estado como o RenovaBio, o novo ‘marco legal’ dos biocombustíveis e acordos internacionais como a COP21 trazem janelas de oportunidades que devem ser exploradas e avaliadas tendo impactos em decisões que influenciarão a grande revolução verde para o setor. Creio que cada um tenha seu pipe de inovação, ideias e visões sobre o setor e este é o momento para reflexões e estabelecimento de estratégias de curto, médio e longo prazo, uma vez que 2030 já está em nosso horizonte.

*Daniel Atala é coordenador da Divisão Industrial do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE)

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