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[Opinião] Afinal, a cana-de-açúcar é bem de capital essencial na recuperação judicial?

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Uma análise técnica sobre a proteção da cana-de-açúcar durante o processo de recuperação judicial no agronegócio.

Por William Matheus Martinez

A recuperação judicial no agronegócio é um instrumento jurídico que possibilita ao produtor rural ou à empresa renegociar suas dívidas junto aos credores, com o objetivo de superar crises econômicas e financeiras e preservar a atividade produtiva. Esse mecanismo tornou-se ainda mais relevante diante do aumento expressivo no número de pedidos. De acordo com dados da Serasa Experian, em 2024 o Brasil registrou 2.273 requerimentos de recuperação judicial, o maior volume desde o início da série histórica em 2014 (Serasa Experian, 2024).

Diante desse cenário, destaca-se a importância da proteção de bens essenciais no curso do processo de recuperação, especialmente durante o período conhecido como stay period, que corresponde à suspensão das ações e execuções por 180 dias, prorrogáveis uma única vez de forma excepcional, desde que o devedor não tenha dado causa à prorrogação. Durante esse prazo, busca-se assegurar a continuidade das atividades do devedor, a manutenção de empregos, a arrecadação de tributos e, consequentemente, a preservação da função social da empresa. Para tanto, a legislação (Lei nº 11.101/2005) estabelece que os bens de capital essenciais devem ser protegidos, restringindo essa tutela àqueles indispensáveis à produção de outros bens ou serviços.

Surge então a questão central deste estudo: seria a cana-de-açúcar um bem de capital essencial no contexto da recuperação judicial de usinas e produtores rurais? A análise inicial pode conduzir a duas interpretações distintas. De um lado, poderia se argumentar que a cana-de-açúcar é essencial, por constituir o insumo básico para a produção de açúcar e etanol, produtos finais da agroindústria. De outro, considerando que a atividade agrícola também se caracteriza pela produção da própria cana como produto finalizado, seria mais adequado classificá-la como estoque, e não como bem de capital.

Para aprofundar essa análise e responder à questão central, é necessário recorrer a conceitos técnicos e contábeis. A cana-de-açúcar é uma cultura semi-perene, com ciclo produtivo médio entre cinco e seis anos, permitindo múltiplos cortes a partir de um único plantio. Nesse contexto, a soqueira de cana — a parte da planta que permanece no solo após o corte — é contabilizada como ativo imobilizado, ou seja, um ativo não circulante sujeito à depreciação ou exaustão ao longo do tempo. Já a cana em pé, que representa a planta desenvolvida acima do solo para corte em cada safra, é tratada como estoque, ou seja, como ativo circulante.

Esse tratamento contábil revela uma distinção relevante: enquanto a soqueira poderia, em tese, ser considerada um bem de capital em razão de sua natureza duradoura, a cana em pé é claramente um produto acabado, apto para comercialização. No entanto, ainda que a soqueira se classifique como ativo imobilizado, sua função prática durante o stay period é limitada, pois não gera novos bens ou serviços no prazo fixado pela lei. Sua capacidade produtiva manifesta-se anualmente, e não de forma contínua e imediata.

A título exemplificativo, imagine-se a situação de uma usina devedora que, em processo de recuperação judicial, pleiteia a proteção de sua cana-de-açúcar em pé contra atos de constrição promovidos por um banco credor detentor de garantia de um crédito não sujeito aos efeitos da RJ: nesse cenário, a classificação da cana como mero estoque, e não como bem de capital essencial, afastaria a suspensão das medidas executivas relativas ao crédito garantido. Da mesma forma, se a garantia recair sobre a soqueira cuja rebrota apenas se concretizará no exercício seguinte ao da propositura da recuperação, igualmente não se justificaria a proteção, preservando-se o direito de execução do credor.

Dessa forma, a proteção da cana-de-açúcar como bem de capital durante a recuperação judicial não se sustenta sob a ótica prática e econômica. Durante o stay period, não haverá produção relevante a partir da soqueira capaz de justificar a manutenção do bem em favor exclusivo do devedor, em prejuízo do credor. Essa conclusão é reforçada pela jurisprudência dos tribunais superiores, que consolidaram o entendimento de que safras, em geral, são produtos finais e não bens de capital (Superior Tribunal de Justiça).

É importante observar que, em culturas agrícolas de ciclo anual, como milho e soja, a situação pode ser distinta sob a perspectiva da garantia sobre imóveis rurais. Nesses casos, a terra produtiva, pela capacidade de gerar safras sucessivas em curtos períodos, poderia ser enquadrada como bem de capital essencial. Todavia, em culturas semi-perenes como a cana-de-açúcar, a produtividade intercalada e a limitada geração de novos ativos durante o stay period comprometem a caracterização da essencialidade.

No tocante aos imóveis rurais, ainda que não constitua o foco central deste estudo, a análise da essencialidade na recuperação judicial demanda atenção específica. Embora as propriedades agrícolas sejam, em regra, fundamentais para o exercício da atividade rural, sua proteção automática durante o stay period não é absoluta. A avaliação deve considerar a aptidão produtiva do imóvel e sua efetiva contribuição para a geração de novos bens e serviços no período de suspensão das execuções. Em culturas anuais, a terra demonstra elevada essencialidade, ao passo que, em culturas semi-perenes ou perenes, a mera titularidade da propriedade não assegura a utilidade imediata exigida para a proteção excepcional no processo de recuperação.

Outro aspecto crítico refere-se às análises práticas realizadas nos processos de recuperação judicial. Frequentemente, a declaração de essencialidade é formulada de maneira genérica por administradores judiciais ou por meio de perícias que não aprofundam o exame técnico da cultura implantada. Muitas vezes, atribui-se à cana-de-açúcar a qualidade de bem de capital de forma automática e perpétua, desconsiderando que a legislação exige a avaliação da utilidade concreta no prazo legal de suspensão.

A aferição da essencialidade dos bens na recuperação judicial, especialmente no agronegócio, deve ser conduzida com rigor técnico, levando-se em consideração o tipo de cultura explorada, sua sazonalidade e o objetivo teórico do stay period. Culturas anuais, que possibilitam ciclos produtivos rápidos e múltiplas safras em um mesmo exercício, podem justificar a proteção mais ampla de bens vinculados à produção. Em contrapartida, culturas semi-perenes ou perenes, como a cana-de-açúcar, cuja produtividade é diluída no tempo e não gera novo ciclo econômico relevante durante o stay period, exigem análise diferenciada. Essa avaliação criteriosa é fundamental para evitar o abuso de direito por parte do devedor, que, ao pleitear a proteção de bens sem efetiva utilidade no curto prazo, compromete a segurança jurídica, onera desproporcionalmente os credores e desvirtua a finalidade da recuperação judicial, que é a preservação viável da atividade empresarial, e não a proteção patrimonial meramente estática.

A recuperação judicial, por sua natureza, configura um esforço coletivo entre devedor, credores e demais agentes econômicos, orientado à preservação da atividade empresarial. Contudo, para que esse mecanismo atinja sua finalidade social de forma legítima, é imprescindível que o Poder Judiciário atue com rigor técnico na análise das situações concretas, evitando que a recuperação seja utilizada como meio de proteção patrimonial indevida. A aferição da essencialidade dos bens, especialmente no setor agroindustrial, deve ser pautada em critérios objetivos e técnicos, de modo a assegurar o equilíbrio entre a preservação da empresa viável e o respeito aos direitos dos credores, preservando a integridade do instituto e a estabilidade do sistema econômico.

Portanto, a proteção ao crédito, especialmente no setor do agronegócio, é pilar fundamental para a manutenção da dinâmica econômica e o financiamento da produção em larga escala. O acesso a linhas de crédito depende da confiança do mercado na efetividade das garantias e na observância dos princípios que norteiam a recuperação judicial, entre eles o respeito ao direito dos credores. Quando a proteção de bens é estendida de forma indevida a ativos que não possuem essencialidade comprovada, como a cana-de-açúcar no contexto analisado, cria-se um ambiente de insegurança jurídica que compromete a concessão de crédito, eleva o custo financeiro das operações e afeta a sustentabilidade do setor. Assim, o equilíbrio entre a preservação da empresa viável e a efetiva tutela dos direitos creditórios é indispensável para fortalecer a cadeia produtiva do agronegócio, estimular novos investimentos e garantir a estabilidade do sistema financeiro ligado à atividade rural.

Diante disso, em uma análise prática e econômica, sem a pretensão de esgotar o tema, conclui-se que a cana-de-açúcar não deve ser considerada bem de capital essencial para fins de proteção no curso da recuperação judicial de usinas e produtores rurais do setor sucroenergético. Essa compreensão reforça a necessidade de avaliações técnicas individualizadas e criteriosas, contribuindo para a segurança jurídica dos credores e promovendo maior estabilidade ao agronegócio e ao mercado financeiro.

 

*William Matheus Martinez é advogado pós-graduado em Direito Corporativo pela Escola Paulista do Direito, com Master Business Administration em Agronegócio pela ESALQ/USP,  Master of Laws – LLM em Direito Societário pelo Insper, especialista em Mediação e Arbitragem pela FGV/SP e em Fusões e Aquisições pela Columbia University. Mestrando em Agronegócio pela  ESALQ/USP e sócio do escritório Martinez & Associados.

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