Nas últimas semanas, um dos principais tópicos no noticiário político internacional foi a saída britânica da União Europeia, conhecida como Brexit. Após quase três anos e duas trocas de comando no governo, ainda não está claro qual formato será adotado pelo Reino Unido – sendo que até a própria saída da UE não pode ser mais dada como certa.
O atual primeiro-ministro, Boris Johnson, vem tentando renegociar o acordo alcançado por sua antecessora no cargo com os demais países do bloco, mas até agora não obteve nenhum sucesso nesta frente. O premiê, entretanto, indica que está disposto a sair da União Europeia sem um acordo se as negociações não avançarem. Esta opção foi apelidada de Hard Brexit pela imprensa britânica.
No começo dessa semana, Johnson perdeu uma série de votações no Parlamento que, entre outras definições, obrigaram o governo a pedir uma extensão do prazo atual de negociações com a União Europeia caso nenhum acordo seja alcançado, evitando assim o Hard Brexit ao final deste prazo, que expira em 31 de outubro. Mesmo com esta definição, poucos analistas veem essa opção como totalmente fora de questão, em grande parte porque até o momento nenhum acordo elaborado conseguiu apoio da maioria do Parlamento.
Esta combinação de fatores criou um cenário em que é impossível prever em qual direção o país irá. Há quem acredite que o governo tentará buscar brechas legais que viabilizem o Hard Brexit mesmo sem a anuência do Parlamento. Grande parte das pessoas já espera que nova eleição será convocada nos próximos meses, sendo que o pleito seria visto como um plebiscito quanto à forma de saída da UE. Também não é possível descartar a possibilidade de que os países remanescentes do bloco percam a paciência e se recusem a prorrogar o prazo das negociações, forçando a saída do Reino Unido ao final de outubro.
Com todas as opções sobre a mesa, o governo do país vem se preparando desde o começo do ano para a possibilidade de Hard Brexit. Neste caso, toda a política comercial britânica, que hoje é gerida pela UE, voltaria para o controle de Londres – ficando sujeita apenas às normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Por isso, o governo britânico já aprovou novas regulamentações para o comércio externo que passarão a vigorar neste cenário.
Regime tarifário para o açúcar em caso de Hard Brexit
Em março deste ano, foram divulgadas as mudanças nas tarifas de importação que serão aplicadas caso o país saia da União Europeia sem um acordo. Mesmo que estas novas regras tenham validade de apenas 12 meses, é provável que elas sejam as bases do comércio com o Reino Unido até que o país comece a assinar novos acordos comerciais, o que ainda deve demorar alguns anos.
Como ficou o novo quadro:
- Açúcar bruto para refino: Foi estabelecida cota de 260 mil toneladas anuais sem tarifa de importação. Para um volume adicional de até 31,42 mil toneladas a tarifa é de €98/ton*. Acima disso a tarifa foi mantida em €339/ton.
- Açúcar branco: Tarifa de €150/ton, o que representa pouco mais de um terço do valor atual (€419/ton).
- Açúcar bruto para consumo direto: Tarifa mantida em €419/ton.
Além disso, alguns países terão cotas preferenciais:
- Brasil: 29,67 mil toneladas de açúcar bruto, com tarifa de €98/ton*.
- Austrália: 4,96 mil toneladas de açúcar bruto, com tarifa de €98/ton*.
- Índia: 4,16 mil toneladas sem tarifa, para qualquer tipo de açúcar.
Países classificados como subdesenvolvidos da África, Caribe e Pacífico (grupo conhecido como ACP) e que hoje podem exportar sem tarifas para o Mercado Comum Europeu manterão o mesmo acesso ao mercado britânico de açúcar.
Impactos das mudanças no regime tarifário
Na última safra completa, de 2017/18 (out-set), praticamente todas as importações de açúcar branco pelo Reino Unido vieram de países da União Europeia. Desta forma, é provável que outros exportadores de açúcar, como o Brasil, aumentem sua participação no mercado britânico no caso do Hard Brexit. Considerando que o Reino Unido é o nono maior importador deste tipo de açúcar no mundo, com mais de 450 mil toneladas na respectiva temporada, esta mudança teria impacto significativo sobre o trade flow global de açúcar branco.
No caso do açúcar bruto, que o país importa mais de 500 mil toneladas, as mudanças devem ocorrer de forma diferente, uma vez que a maior parte do produto internalizado hoje pelo Reino Unido vem de países da ACP, que manterão o acesso livre de tarifas ao mercado britânico. Mas a competitividade destes países – que depende em grande parte deste acesso privilegiado – pode ser seriamente impactada.
Isso seria resultado da introdução da cota de 260 mil toneladas livre de impostos que estará disponível para açúcar bruto de todas as origens. Como hoje não há na União Europeia nenhuma cota tão vantajosa para exportadores que não sejam de países subdesenvolvidos, é provável que os produtores brasileiros poderão aumentar significativamente sua participação no mercado britânico. Isso com base nesta variedade, beneficiando-se da maior competitividade do produto nacional.
Estimativa de aumento das exportações brasileiras
Para estimar o potencial de aumento das exportações brasileiras para o Reino Unido em caso de Hard Brexit,. consideramos que a cota de açúcar bruto importado sem tarifa levará ao aumento das compras externas desta variedade, em detrimento do branco. Além disso, consideramos que a participação da UE no mercado britânico cairá para níveis semelhantes ao de outros países vizinhos. Que não fazem parte do bloco devido à imposição de tarifas alfandegárias.
Com estas premissas, e supondo que as demais participações continuarão semelhantes às registradas na última safra completa,. estimamos que as exportações brasileiras de açúcar branco para o Reino Unido passariam de pouco mais de 2 mil toneladas para mais de 40 mil toneladas ao ano. Mais relevantes seriam as exportações de bruto. Que passariam de 88 mil toneladas no cenário que não considera o Hard Brexit para 290 mil toneladas no cenário que considera.
Com isso, as vendas totais das usinas brasileiras para este mercado alcançariam 329,4 mil toneladas no cenário analisado. Um aumento de quase 240 mil toneladas apenas devido às mudanças tarifárias. Dessa forma, a participação brasileira nas importações britânicas chegaria a aproximadamente 30% do total, contra 8,2% na projeção que não considera a saída abrupta da UE.
Ganhadores e perdedores no mercado de açúcar em um cenário de Hard Brexit
Considerando os argumentos apresentados, as usinas brasileiras devem estar entre as principais beneficiárias da maior abertura do mercado britânico de açúcar em caso de Hard Brexit. Ainda, devemos citar que a única refinaria independente de açúcar do Reino Unido. Que até fez campanha pela saída da União Europeia.
As usinas do restante do bloco, com destaque para as francesas, sairiam prejudicadas pelo Hard Brexit. Essa situação pode complicar ainda mais as finanças do setor, que já foram afetadas pelos baixos preços no mercado internacional. E pela queda nas cotações dentro da UE após desregulamentação do mercado doméstico, realizada em 2017.
Além disso, as usinas de países da ACP também podem ser prejudicadas pelos preços mais baixos no Reino Unido. Sendo que este setor também foi fortemente atingido pela queda nas cotações europeias do açúcar desde a desregulamentação.
* João Botelho é economista, com graduação na UNICAMP e especialização em Finanças Corporativas pela mesma Universidade. É Especialista em Inteligência de Mercado na INTL FCStone, com foco em açúcar e biocombustíveis.