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Mitos sobre irrigação de cana-de-açúcar
A irrigação da cana-de-açúcar é rodeada por muitos mitos, e o especialista Vinicius Bof Bufon, pesquisador da Embrapa Cerrados, esclarece alguns deles nessa primeira série exclusiva da RPAnews sobre Mitos e Fatos sobre cana irrigada
Vivemos tempos de acentuada falta de e falsa informação (fake news). Essa realidade afeta também a compreensão de informações científicas, como é o caso das recomendações para o sistema de produção irrigada de cana-de-açúcar, principalmente por se tratar de prática efetivamente pouco adotada no setor sucroenergético brasileiro, já que a aplicação de vinhaça com sistema irrigado não é considerada.
Como forma de contribuir para o esclarecimento de alguns aspectos importantes, com base na sua experiência com pesquisa, desenvolvimento e gestão em sistema de produção irrigada, Vinicius Bof Bufon, pesquisador da Embrapa Cerrados aponta alguns mitos para algumas afirmações feitas de forma recorrente no setor sucroenergético. CONFIRA:
A cana-de-açúcar é uma planta rústica e por isso não precisa de muita água ou de irrigação: É MITO
Inclusive, já foi utilizado como argumento recorrente no início da produção irrigada de diversas culturas que hoje fazem amplo uso da irrigação no País, como o café e a laranja. Talvez, se compararmos a cana com algumas outras culturas, podemos dizer que essa afirmação é verdadeira, já que a cana precisa de menos água para sobreviver.
Contudo, no contexto da produção comercial, o objetivo não é a mera sobrevivência da planta. Ao contrário, um sistema de produção sustentável precisa ofertar as melhores condições para que a cultura entregue o melhor de seu potencial genético e seja o mais eficiente possível.
Por isso, não basta que a cana sobreviva. É fundamental que ela entregue a maior produção com a menor quantidade de recursos possível. Nesse sentido, a afirmação acima é um grande mito.
Vale ressaltar que, quando historicamente produzida somente no litoral e no bioma Mata Atlântica, a produção de cana brasileira estava, de fato, em um ambiente onde a oferta hídrica era abundante e bem distribuída ao longo do ano. Mesmo nesses ambientes, com certa frequência, anos mais secos traziam impactos muito negativos para produção e sustentabilidade dos negócios.
Com o passar dos anos, e por diversas razões técnicas, logísticas, econômicas e sociais, as lavouras foram migrando para o bioma Cerrado – inicialmente em São Paulo e depois para Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e até o Pará.
Hoje, aproximadamente 50% da cana-de-açúcar do País já é produzida no Cerrado e essa proporção cresce anualmente. Como é sabido, o Cerrado é caracterizado por uma estação seca que pode durar de 4 a 7 meses. Nesse ambiente, não somente o desenvolvimento da planta é tremendamente reduzido, mas também o vigor da brotação da soqueira, resultando em drástica redução da longevidade dos canaviais.
Outro aspecto que vale a pena esclarecer é que, de fato, seguindo a lógica da Lei dos Mínimos de Liebig, o fator de produção mais restritivo pode não ser a água em um contexto de baixíssimo aprimoramento tecnológico e de gestão. Mas, convenhamos, hoje a realidade do setor sucroenergético nacional é muito diferente daquela de 40, 50 anos atrás.
As empresas que têm sobrevivido às crises, que têm tido sucesso nos negócios e crescido, são justamente aquelas que têm aprimorado os manejos varietal, de fertilidade, de ervas-daninhas, fitossanitário, sem falar na grande mudança da colheita manual de cana queimada para colheita mecanizada de cana crua, e tantos outros aprimoramentos tecnológicos e gerenciais.
Com isso, a água, que já era o principal fator de produção, passou a ganhar ainda mais relevância. Afinal, à medida em que se aprimorava os outros fatores de produção, a canavicultura foi migrando para regiões com oferta hídrica cada vez mais escassa. E por que não dizer ainda dos desafios trazidos pelas mudanças climáticas globais, que podem resultar em eventos de seca cada vez mais severos e frequentes para regiões onde a restrição hídrica não era tão limitante?
Por essas razões, dizer que a cana-de-açúcar, por ser uma planta rústica, não precisa de irrigação é sim um mito.
Cana irrigada consome mais água do que cana de sequeiro: É MITO
Inicialmente, note que é mais apropriado substituir a palavra consumo pela palavra uso. Consumo traz uma visão equivocada de que a água que passa pelo interior da planta é permanentemente perdida, desaparece do sistema hídrico.
Uma visão menos atenta e sistêmica poderia equivocadamente concluir que a cana irrigada, por utilizar água proveniente de rios, represas ou poços, acaba por usar mais água que uma cana de sequeiro. Contudo, a cana de sequeiro também precisa de água para sobreviver e produzir. Ela, como qualquer outra planta, absorve parte da água da chuva com suas raízes, transporta essa água passando pelos colmos e chegando até as folhas, de onde é liberada na atmosfera pela transpiração. A cana irrigada é idêntica à de sequeiro, mas, além da água da chuva, também transpira a água que lhe foi entregue pela irrigação no período de seca.
Numa visão mais holística, precisamos trazer a eficiência produtiva para o centro da conversa. A cana irrigada, por sofrer menor estresse hídrico e nutricional, consegue produzir mais colmos com cada gota de água que utiliza. A pesquisa da Embrapa Cerrados tem mostrado que a cana irrigada, quando comparada à de sequeiro, consegue extrair mais de seu potencial genético e produzir até 50% mais colmo e açúcar para a mesma quantidade de água utilizada.
Por exemplo, um canavial de sequeiro que recebeu 1200 mm de chuva e produziu 80 ton/ha entregou uma eficiência de 66 kg/mm. No Cerrado, com a tecnologia que temos hoje, conseguiríamos adicionar 300 mm de irrigação e produzir, na mesma área, 120 toneladas, ou seja, uma eficiência de 80 kg/mm. Ou poderíamos adicionar 450 mm de irrigação aos 1200 mm da chuva e produzir 150 ton/ha, gerando eficiência de 83 kg/mm.
A demanda de cana-de-açúcar não é regida pelo setor sucroenergético, mas pelo mercado consumidor, seu modo de vida e sua demanda por alimento, energia etc. O que cabe ao setor sucroenergético é responder como será produzida essa cana, com que níveis de eficiência e sustentabilidade.
Como a cana irrigada usa menos água para produzir cada tonelada de colmos, se o setor sucroenergético resolver que produzirá 20%, 40% ou 60% dessa produção anual em sistema irrigado, no final das contas, a necessidade de água para atender a demanda anual de cana, na verdade, reduzirá.
Para isso, seria fundamental alocar a produção irrigada exclusivamente onde há disponibilidade hídrica – água outorgável. Mas o fato é que as lavouras irrigadas, mesmo utilizando água além da que vem das chuvas, produzem mais e com maior eficiência. E na contabilidade final, a cana irrigada utiliza menos água para produzir a mesma tonelada de colmos ou açúcar.
Irrigar cana-de-açúcar é uma agressão ao meio ambiente – É MITO
O sistema de produção irrigada de cana-de-açúcar, como qualquer outro, deve obedecer às melhores práticas de sustentabilidade e atender rigorosamente às legislações ambientais. Isso inclui utilizar única e exclusivamente água outorgada.
A outorga é concedida com base no estudo do histórico de vazões do manancial, garantindo que a maior fração permanecerá intacta, preservando a vida do ecossistema. Para isso, é crucial uma gestão responsável dos recursos hídricos pelos órgãos públicos e a participação efetiva, cooperativa e harmoniosa dos usuários nos comitês da bacia. Nesse campo, apesar do grande avanço nos últimos anos e da moderna legislação de águas do Brasil, ainda há muita oportunidade de avanço.
Para uma análise técnica e racional da sustentabilidade da produção irrigada de cana-de-açúcar, é fundamental a compreensão dos seguintes fatores:
- A quantidade de água utilizada por toda agricultura irrigada do País representa menos de 0,6% do que existe em nossos rios;
- O Brasil possui umas das legislações de água mais modernas do mundo;
- É possível disponibilizar para produção irrigada de cana, de forma sustentável, uma pequena fração da vazão outorgável ainda disponível em muitas regiões do País, e isso só depende de gestão técnica e responsável, focada na sustentabilidade ambiental;
- A produção irrigada pode ser mais eficiente no uso da água do que a produção de sequeiro.
Percebemos com isso que a produção irrigada de cana-de-açúcar é uma oportunidade para o Brasil e o setor sucroenergético reduzirem a quantidade de água hoje utilizada para atender a demanda de cana-de-açúcar, açúcar, etanol, energia elétrica etc.
Ademais, o ganho de eficiência promovido pelo sistema irrigado de produção implica em verticalização da produção, ou seja, produz-se mais em menor área. Com isso, a quantidade de terra necessária para atender a demanda de cana-de-açúcar poderia ser substancialmente reduzida, sobrando terra para ser destinada a outros usos, inclusive para preservação de vegetação nativa.
Vale ainda enfatizar que a biomassa de palha, a produção de raízes e a atividade microbiológica do solo é proporcional ao vigor da produção de biomassa aérea da cana-de-açúcar. Por isso, a cobertura e a proteção do solo, a redução da erosão, a infiltração da água, a redução da compactação, a atividade microbiológica do solo e o sequestro de carbono são proporcionalmente maiores em sistemas irrigados racionalmente conduzidos do que em sistemas de sequeiro.
Por essas razões, sistemas de produção como o da cana irrigada, mais modernos, eficientes, verticalizados e racionalmente conduzidos, podem propiciar maior sustentabilidade ambiental do que a produção de sequeiro.
*Vinicius Bof Bufon é pesquisador da Embrapa Cerrados
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