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Sistema irrigado de produção de cana-de-açúcar não é mais uma dúvida, dizem pesquisadores da Embrapa Cerrados
Segundo pesquisa da Embrapa Cerrados, não há nenhum outro novo sistema de produção ou manejo agronômico que possa trazer, em curto e médio prazo, impactos tão substanciais na lucratividade, competitividade e sustentabilidade do setor sucroenergético brasileiro como a irrigação
Por Natália Cherubin
A transição de parte da produção de cana-de-açúcar brasileira do sistema de sequeiro para o sistema irrigado não é mais uma dúvida. Segundo especialistas da Embrapa Cerrados, em capítulo de recente livro, publicado em 2021, isso é resultado da já consolidada e crescente migração da produção sucroenergética para o Cerrado, da estagnação da produtividade, que é resultado do represamento do potencial genético pelo estresse hídrico acentuado, e da urgência de verticalização da produção, eficiência e sustentabilidades econômica, social e ambiental do setor sucroenergético brasileiro.
“A velocidade com que essa transição ocorrerá dependerá, além da saúde financeira das empresas, da difusão das inovações tecnológicas em sistema irrigado acumuladas na última década e da multiplicação de vitrines tecnológicas e áreas piloto em escala comercial, para evidenciar os resultados possíveis”, afirmam os pesquisadores.
Diferentemente de outras culturas que estão dentro de sistemas irrigados de produção, ou seja, irrigação com água ao longo de todo o ciclo da cultura, no setor sucroenergético às práticas mais comuns ainda são a distribuição de vinhaça e água residuária ou, ainda, o salvamento realizado imediatamente após a colheita, de uma única lâmina de 40 a 60 mm de água pura, ou com algum grau de mistura com vinhaça e água residuária, visando melhor brotação dos canaviais colhidos no período seco.
De acordo com a equipe de pesquisadores Embrapa Cerrados, liderada por Vinícius Bof Bufon, entre 1975 e 2015 a área colhida de cana-de-açúcar no Cerrado aumentou de 490 mil hectares para cerca de 5 milhões de hectares, ou seja, de 25% para 49%. Em 2017, mais da metade da produção sucroenergética já estava no Cerrado.
Apesar das vantagens que impulsionaram a cana-de-açúcar para o Cerrado, a pesquisa explica que a concentração do período chuvoso em poucos meses e a baixa capacidade de retenção de água de seus solos implicam em baixa chuva efetiva e reduções da evapotranspiração frequentemente superiores a 50% do potencial.
“Um conceito muito importante para compreender a maior deficiência hídrica no Cerrado é o de precipitação efetiva (Pef), aquela fração da chuva que é, de fato, absorvida e utilizada pelas plantas. Nesse bioma, o percentual da precipitação que se torna efetiva é pequeno, em virtude da grande concentração da precipitação em poucos meses do ano, resultando numa grande fração dessa chuva que escoa diretamente para rios e lagos, e percola para o lençol freático, abaixo da zona radicular, antes que a planta consiga utilizá-la”, explica equipe em trecho do trabalho.
Além da característica do Bioma Cerrado, o hídrico dessa região tem se agravado com a redução do volume precipitado e o encurtamento da estação chuvosa. Além disso, segundo os pesquisadores, há evidências de que as mudanças climáticas globais podem aumentar ainda mais a deficiência hídrica da cana-de-açúcar no Cerrado, o que, além de reduzir o potencial produtivo, encurtaria ainda mais a janela adequada de plantio, elevando ainda mais os custos de produção.
A expansão da cana para o Cerrado e o agravamento do hídrico motivaram a Embrapa Cerrados, em 2008, a iniciar trabalhos de pesquisa para o setor. Sua ampla experiência em aprimoramento e desenvolvimento de sistemas de produção para o Cerrado, aliado à visão de que havia grande potencial genético não explorado nas variedades de cana existentes, direcionou os esforços para o aprimoramento e desenvolvimento de novos sistemas de produção de cana para este bioma. Nesse contexto, acreditava-se que não haveria outro fator de produção, além da água, capaz de impactar tão fortemente em médio e longo prazo a verticalização da produção, competitividade e sustentabilidade ambiental da produção sucroenergética brasileira.
“A pesquisa para o desenvolvimento de um sistema irrigado de produção de cana- de-açúcar para o Cerrado brasileiro ganhou força. O interesse e incentivo no setor vinha de alguns poucos produtores de regiões de maior deficiência hídrica do Cerrado, ou que tinham alguma experiência com outras culturas irrigadas, ou mesmo de produtores tradicionais do bioma Mata Atlântica com perfil mais inovador. Mas a maior parte dos produtores ainda se mostravam muito relutantes em acreditar no potencial ou viabilidade econômica da tecnologia. Esse fenômeno é muito semelhante ao identificado nos primórdios da produção irrigada de diversas outras culturas, como café e laranja”, afirmaram os pesquisadores.
As crises hídrica e econômica da última década levaram à falência dezenas de usinas e, dentre as que sobreviveram, aceleraram o interesse e os investimentos em sistemas irrigados de produção. Apesar disso, o sistema irrigado de produção de cana-de-açúcar ainda não ocupa área expressiva no setor sucroenergético brasileiro. Segundo o trabalho, menos de 2% das unidades produtoras de cana possuem alguma fração expressiva e, menos de 1% possuem a maior fração de seus canaviais sob sistema irrigado de produção. “No entanto, a acentuação dos efeitos negativos das secas, cada vez mais frequentes e mais severas tem gerado uma grande onda de interesse no sistema irrigado de produção”, destacam.
Mais produtividade e longevidade
São diversas as vantagens técnicas, sociais, financeiras e ambientais da verticalização promovida pelo sistema irrigado de produção de cana-de-açúcar. E não há, por enquanto, segundo os pesquisadores da Embrapa Cerrados, nenhum outro novo sistema de produção ou manejo agronômico que possa trazer, em curto e médio prazo, impactos tão substanciais na lucratividade, competitividade e sustentabilidade do setor sucroenergético brasileiro.
“Por essas razões cresce o consenso de que o sistema irrigado de produção de cana-de-açúcar será, muito em breve, a nova realidade brasileira, ocupando grande fração da área produtiva. No entanto, para acelerar o ganho de escala do sistema irrigado de produção no país, duas frentes precisam ser trabalhadas. A primeira diz respeito à desconstrução de alguns mitos e, a segunda, ao avanço da inovação tecnológica para o estabelecimento de premissas e protocolos cada vez mais sólidos para assegurar ganhos de sustentabilidade econômica, social e ambiental para o setor sucroenergético”, salientam em trabalho.
O sistema irrigado de produção de cana-de-açúcar confere maior produtividade tanto em toneladas de colmo por hectare (TCH) quanto em quilos de açúcar por tonelada de colmo (ATR). Consequentemente, também confere maior produtividade em termos de toneladas de açúcar por hectare (TAH).
Um dos principais fatores de redução da produtividade de canaviais está associado à perda de população de colmos que é resultado, além da deficiência hídrica, do pisoteio, abalo e arranquio de soqueiras, do aumento da infestação de pragas e doenças, do aumento da pressão de ervas-daninhas, e da degradação da fertilidade do solo. A longevidade de um canavial é, frequentemente, definida por uma produtividade mínima aceitável (TCH ou TAH). As usinas costumam definir esse patamar mínimo empiricamente, ou com uma matriz de decisão composta exclusivamente de parâmetros técnicos, ou associando parâmetros técnicos com alguma métrica financeira como, por exemplo, fluxo de caixa descontado.
A produtividade mínima aceitável também oscila em função da capacidade financeira para custear a reforma e do custo de oportunidade de deixar uma área sem produção, mesmo que baixa, em ano de bom preço do açúcar e álcool. Mesmo quando se decide o momento de renovação do canavial através de uma matriz de decisão multivariada, a produtividade atual e a produtividade potencial, caso o canavial fosse renovado, sempre tem grande peso na decisão.
“Em uma usina com nível de produtividade inferior, esse limite pode ser um TCH de 40 ou 50. Já nos melhores canaviais do país a produtividade mínima aceitável pode ser um TCH de 80 ou 90. Contudo, todas essas referências têm como base um canavial de sequeiro. Se mantivermos esses mesmos níveis para áreas irrigadas, certamente a longevidade do canavial irrigado aumentará substancialmente. Primeiramente, porque, comparado às áreas de sequeiro, a melhor condição hídrica e nutricional do canavial irrigado favorecerá a rebrota e reduzirá suas falhas. Segundo, porque, sob condição irrigada, a fração dos perfilhos que se tornam colmos é superior. Ou seja, a melhor condição hídrica e nutricional de um canavial sob sistema irrigado mantém maior população de colmos e o declínio populacional ao longo dos anos é desacelerado em comparação com o canavial de sequeiro”, detalham em trabalho os pesquisadores da Embrapa Cerrados.
Além de maior população de colmos, o sistema irrigado oferece, segundo os pesquisadores, melhores condições para o crescimento desses colmos ao longo do ciclo. “Diante da ocorrência de falhas, o sistema irrigado permite que a touceira imediatamente ao lado da falha explore melhor a radiação adicional disponível e reduza o impacto da falha adjacente”, adicionam.
Oportunidades e desafios
O sistema irrigado de produção deve ser observado como um negócio individualizado. Ao se analisar o fluxo de caixa, os pesquisadores afirmam haver um grande custo de oportunidade “se esperamos de 12 a 15 anos para que uma área irrigada atinja as mesmas produtividades mínimas estabelecidas como referência de reforma para uma área de sequeiro”.
“Por exemplo, considere que a produtividade de colmos de uma área irrigada atingiu, após alguns ciclos, 110 t ha-1. Será mais interessante, financeiramente, aguardar mais alguns anos para que essa produtividade chegue a 80 t ha-1 determinada como ponto de reforma para uma área de sequeiro? Ou será melhor renovar o canavial e retornar à produtividade dessa área para patamares acima de 200 t ha-1? Enquanto negócio, qual seria a melhor estratégia? E se considerarmos que a vida útil de equipamentos de irrigação, com boas práticas de manutenção, pode atender a dois ou três ciclos de 8 a 10 anos mesmo no gotejamento, pode-se optar por trocar apenas as linhas gotejadoras em dois ou três ciclos, dado que representam, aproximadamente, 30% do custo de um sistema novo e, com a troca, poderá operar por mais dois ou três ciclos de 10 anos”, detalham.
Ainda de acordo com eles, comparado a um sistema de sequeiro, é fato que a longevidade do canavial irrigado é maior. Mas enquanto estratégia de negócio, financeiramente poderá ser mais interessante estabelecer uma produtividade mínima aceitável mais elevada para o canavial irrigado o que, na prática, pode significar um aumento de longevidade ligeiramente menor do que os 12 a 15 anos comumente preconizados.
Um dos desafios é acelerar o ganho de escala do sistema irrigado de produção no país. Para isso duas frentes precisam ser trabalhadas. “A primeira diz respeito à desconstrução de alguns mitos e, a segunda, ao avanço da inovação tecnológica”, afirmam os pesquisadores.
Outro desafio apontado pelos pesquisadores é superar os mitos como “cana-de-açúcar é rústica e não precisa de muita água” ou “cana sob sistema irrigado consome mais água do que em sequeiro”, ou que “produzir em sistema irrigado é adicionar água ao sistema de sequeiro” ou ainda que “irrigar cana-de-açúcar é uma agressão ao meio ambiente”.
Além de desconstruir gradativamente os mitos sobre o sistema irrigado de cana-de-açúcar, os pesquisadores da Embrapa dizem que algumas demandas de ajuste tecnológico para produção eficiente sob sistema irrigado de produção devem evoluir, como é o caso de variedades de canas mais responsivas à irrigação e de um manejo nutricional e fitossanitário mais adequados a realidade da irrigação.
Com informações do Capítulo 25: Sistema irrigado de produção de cana-de-açúcar no Brasil: história, mitos e desafios