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Bonsucro: o que a União Europeia não vê no etanol brasileiro

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Investigação aponta problemas em selo exigido por europeus que, entre outras coisas, atesta se produtor de cana no Brasil respeita regulamentos ambientais, direitos humanos e normas trabalhistas.

Um selo que garante a produtores brasileiros de etanol acesso ao cobiçado mercado europeu tem um processo de certificação falho, aponta o Ministério Público do Trabalho (MPT). O caso também expõe deficiências da própria União Europeia em impedir potenciais abusos de direitos trabalhistas na cadeia do biocombustível que chega ao bloco.

Desde 2011, o selo Bonsucro é reconhecido pela UE para garantir o acesso de etanol ao mercado comum. Sua emissão é realizada pela iniciativa Bonsucro, baseada no Reino Unido, uma organização formada por múltiplas partes interessadas. Entre seus membros estão produtores brasileiros como a Copersucar e a Braskem, compradores de açúcar como a Coca-Cola, Nestlé e Ferrero, e a ONG WWF. A certificação já habilitou 46 usinas brasileiras nos últimos anos.

Para obter o selo, as empresas devem atender a vários princípios estabelecidos pela Bonsucro. Em tese, o selo atesta que o produtor, entre outros pontos, respeita a liberdade sindical, regulamentos ambientais e limites de emissão de carbono, os direitos humanos e normas trabalhistas. Em março de 2017, a UE renovou o reconhecimento do certificado por mais cinco anos.

Só que, segundo o procurador Rafael Gomes, do Ministério Público do Trabalho em Araraquara (SP), uma das principais regiões produtoras de cana-de-açúcar no Brasil, o processo de auditoria da Bonsucro que precede a concessão do certificado não assegura que alguns dos princípios estabelecidos pela própria iniciativa são efetivamente cumpridos.

“Do jeito que está, estão praticamente vendendo um certificado”, disse ele à DW. O processo de verificação dos princípios é feito por auditores licenciados pela Bonsucro. No caso do Brasil, há pelo cinco empresas listadas pela iniciativa que assumem a tarefa de verificação.

Falhas

Segundo Gomes, os auditores se mostram extremamente dependentes de informações fornecidas pelas próprias empresas quando verificam potenciais problemas trabalhistas e de direitos humanos.

Um relatório elaborado pelo MPT aponta, por exemplo, que os auditores se limitam a perguntar para as próprias empresas se há alguma grande ação trabalhista contra a usina ou a imposição de medidas de adequação por parte do Ministério Público. De acordo com o procurador, os auditores não se dão ao trabalho de confrontar as informações fornecidas pelas usinas – que pintam um quadro positivo – com outras fontes, como sindicatos, a Justiça e o próprio MPT.

Gomes aponta que no caso da auditoria realizada com uma usina de Jaboticabal (SP), os auditores se limitaram a ouvir os trabalhadores na sede da empresa para saber se acordos coletivos eram respeitados e os trabalhadores se relacionavam livremente com sindicatos. “Os auditores não procuram os próprios sindicatos”, afirmou.

Relatórios listados pelo MPT também apontam que os auditores recorrem a entrevistas com funcionários e verificação de holerites para verificar se a empresa não emprega crianças ou trabalhadores forçados. De acordo com o MPT, não há menção por parte dos auditores se foi feita uma verificação junto à procuradoria ou uma consulta à “lista suja” de indústrias condenadas por trabalho escravo para concluir que não há processos ou condenações contra a empresa auditada.

“Mesmo essa verificação de holerites não diz muito. Empregadores envolvidos com trabalho escravo sempre podem produzir holerites para mascarar a realidade. Os auditores não parecem ter noção do que é trabalho escravo na prática”, afirmou o procurador Gomes.

Para ele, a consulta à Justiça, sindicatos, e outras entidades poderia colocar em xeque alguns selos condidos pela Bonsucro. Um exemplo, segundo ele, envolve a já mencionada usina de Jaboticabal. A auditoria concluiu que a empresa não terceirizava atividades. Segundo o MPT, trata-se de uma mentira. Um documento da procuradoria aponta que à época da auditoria, em outubro de 2016, a usina já era alvo de uma ação civil por fraude no registro de empregados. Em 2017, a Justiça reconheceu a procedência da ação.

O MPT convocou representantes do escritório da Bonsucro para uma audiência em julho de 2017. Segundo Gomes, os representantes da iniciativa não compareceram.

Não é apenas o MPT que apontou problemas na concessão de certificados. Estudo da ONG francesa Sucre Éthique (Açúcar Ético) apontou que entre 43 usinas certificadas entre 2011 e 2016, 19 foram condenadas por violações trabalhistas e ambientais após a concessão do selo. A ONG também concluiu que o processo de auditoria precisava ser aprimorado.

Diante dessa percepção de irregularidades, o MPT decidiu acionar a Comissão Europeia para pedir a revogação do mecanismo de certificação Bonsucro. “A Comissão deve assumir sua responsabilidade. Não basta determinar a exigência e nunca mais verificar se o certificado está sendo concedido com base em critérios sérios”, disse.

A responsabilidade da Europa

Mas a Comissão Europeia também parece ser parte do problema. Embora o MPT aponte que as auditorias realizadas por empresas licenciadas pela Bonsucro estão violando alguns dos princípios estabelecidos pela própria iniciativa, potenciais problemas na área trabalhista e direitos humanos não estão em conflito com as exigências fixadas pela UE para a importação de etanol.

A chamada Diretiva Sobre Energia Renovável (RED, na sigla em inglês) da União Europeia, criada em 2009, que incentivou a criação do selo Bonsucro, simplesmente não inclui requisitos obrigatórios de respeito à legislação trabalhista ou de combate ao trabalho escravo ou infantil. As condições da UE cobrem na maioria questões ambientais, como emissões de carbono ou uso do solo.

Assim, uma certificadora como a Bonsucro foi até mesmo além do que era exigido ao incluir preocupações com temas trabalhistas e de direitos humanos em suas auditorias, mesmo que, segundo o MPT, a verificação deixe a desejar.

A própria Comissão Europeia não vê problemas em apontar que as certificadoras não foram acreditadas para observar esses aspectos, a não ser que eles tenham algum impacto nos requisitos ambientais. Segundo a CE, a fiscalização de aspectos trabalhistas está a cargo das autoridades locais, como o MPT.

Essa falha em exigir o respeito a aspectos sociais e trabalhistas nas condições de importação é regularmente alvo de críticas. A WWF, que participa do esquema Bonsucro, já pediu que eles sejam incluídos como condições obrigatórias.

Em 2016, o Tribunal de Contas Europeu, um organismo da UE, apontou que os critérios da RED não eram suficientes para impedir problemas como condições precárias de trabalho. O Tribunal também apontou que outras diretivas de importação de produtos como óleo de palma e soja, que resultaram na criação de esquemas semelhantes ao Bonsucro, também não impõem critérios que tratam de questões trabalhistas.

Outro lado

Procurada pela DW, a Bonsucro afirmou que está sempre tentando aperfeiçoar seu processo de auditoria e concessão do selo e que está ciente dos problemas apontados pelo MPT. A entidade ainda lembrou que seu “protocolo de certificação foi aprovado pela Comissão Europeia como tendo atingido os níveis de performance esperados para a validação dos critérios sustentáveis”.

A Bonsucro apontou que se envolveu “pró-ativamente com a investigação do MPT”, mas deixou de comparecer à audiência com a procuradoria quando lhe foi solicitada que seus representantes enviassem alguém com o poder de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

“Considerando que a Bonsucro é uma iniciativa privada de governança de partes interessadas, o CEO não tem poder para assinar tal tipo de documento, portanto declinamos a participação. No entanto, nós continuamos a participar pró-ativamente com o procurador. Nós também pedimos ao MPT para contribuir com a melhoria do nosso sistema, mas dentro das regras e processos previstos em nossa governança.”

A Bonsucro também lembrou que a inclusão de um “critério social” em suas auditorias vai além “do que é exigido pela EU. “Por exemplo, nossos critérios incluem, níveis de acidentes, saúde e segurança dos trabalhadores, pagamento de salários legítimos e prevalência de contratos para todos os empregados diretos e indiretos”. Por fim, a entidade disse que “suas auditorias não são equivalentes a inspeções oficiais”, “que são, é claro, de responsabilidade das autoridades legais que dedicam recursos específicos para conduzir investigações profundas”. (Deutsche Welle)

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