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Edição 209

Os segredos da produção da cana orgânica

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Com um manejo adequado e acompanhamento certo, o produtor de cana orgânica pode atingir a mesma produtividade dos canaviais convencionais, garantindo ainda preços melhores no mercado

Alisson Henrique

A produção de culturas orgânicas, de modo geral, vem se desenvolvendo ao longo dos últimos anos e atendendo a uma demanda de mercado cada vez mais crescente. Apesar da maior produção de orgânicos do mundo ser em cana-de-açúcar, quando comparada a produção convencional, a cana orgânica e, consequentemente, o açúcar orgânico, ainda tem representatividade baixa dentro das unidades sucroenergéticas brasileiras.

Confira a edição 209 da revista RPAnews

Maiores limitações desde o manejo nutricional até o controle efetivo de pragas, doenças e mato competição, que tem que ser realizadas sem o uso de quaisquer produtos químicos são alguns dos fatores que restringem a produção do orgânico.

Segundo dados da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), na safra 2016/17, a produção de açúcar orgânico no Brasil foi de 181.438 t, representando 0,51% da produção total do Centro-Sul. Já na safra 2017/18, de acordo com dados da RPA Consultoria, esse número subiu para 217 mil t, o que representa mais da metade de toda a produção mundial de açúcar orgânico, que até 2017/18 era de 400 mil t (Gráfico 1).

Produtor de cana orgânica pode atingir a mesma produtividade dos canaviais convencionais, garantindo ainda preços melhores no mercado

Até 2018, a produção de açúcar orgânico estava bem dividida entre três grupos do setor: em primeiro lugar o grupo Balbo, detentor da marca Native, com 40% da produção, seguido da Jalles Machado, com 32% e a Goiasa, com 19% da produção do açúcar orgânico do Brasil (Gráfico 2).

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Enquanto o preço do açúcar é US$ 13 cents/libra-peso, o açúcar orgânico chega a valer US$ 40, o que significa que é um produto de maior valor agregado. Agora você pode se perguntar, se o orgânico tem muito mais valor de mercado, por que ainda temos tão pouca produção de cana orgânica?

Egyno Trento Filho, hoje sócio-consultor da RPA Consultoria, que foi um dos primeiros engenheiros agrônomos – junto a Leontino Balbo, diretor da São Francisco – a viabilizar a cana orgânica no Brasil a partir do final dos anos 90, explica apesar dos preços do açúcar orgânico no mercado mundial serem mais remuneradores, a produção da cana orgânica e açúcar orgânico não são processos fáceis de serem implementados.

“Produzir cana orgânica requer um período de carência, modelos de manejo muito diferentes do manejo convencional e uma mudança muito grande de paradigmas da equipe. Além disso, requer também investimentos adicionais, que nem sempre estão claros”, destaca o consultor, que foi responsável pela implementação do manejo orgânico na Univale, antes do grupo se tornar Raízen, e, depara cá, tornou-se auditor do IBD (Instituto Biodinâmico) e consultor para implantação de novos canaviais orgânicos, como os da Nova América, Tereos (Guarani), Cosan/Raízen e Albertina. Na RPA, ele também prestou consultoria para a Pantaleón na Guatemala e em um greenfield de Moçambique.

MANEJO ORGÂNICO É QUASE UM SEGREDO

O Brasil tem hoje aproximadamente 40 mil hectares de cana orgânica, que estão divididos basicamente entre os estados de São Paulo e Goiás, com a porcentagem maior para Goiás (51%), onde estão localizadas a Jalles Machado e a Goiasa que, assim como a grande produtora, Usina São Francisco, do Grupo Balbo, mantém as informações sobre o manejo dessa cana sob sigilo quase que absoluto.

Apesar de muito pouco divulgarem sobre o tema, é sabido que um dos fatores mais importantes e que geram a curiosidade dos canavieiros convencionais é sobre como é feito o controle de pragas efetivo, já que não é permitido utilizar agroquímicos ou adubos solúveis.

“A adubação é basicamente feita com matéria orgânica oriunda de compostos como a torta de filtro mais cinzas da indústria, adubação verde, vinhaça, fosfato de rocha ou hiperfosfatos, calcário e gesso de rocha. Não é permitido, por exemplo, usar o gesso fruto da extração do fósforo nas indústrias de adubo”, revela Trento Filho.

Para o professor e doutor Edgar Gomes Ferreira de Beauclair, do Departamento de Produção Vegetal da Esalq/USP, o manejo acaba se tornando dependente do tipo de certificação. No entanto, ele diz que na correção do solo normalmente é feita a calagem tradicional com adubação orgânica, sendo permitido o uso de vinhaça.

“Além disso, usa-se a torta de filtro de processos certificados, o controle de pragas é biológico e com manejo dos ciclos, as doenças são controladas com o uso de variedades resistentes e tolerantes, e o controle de plantas daninhas é o mais desafiador, com práticas de manejo que incluem uso da palha, épocas de plantio e colheita e cultivos mecânicos”, adiciona.

Segundo o consultor Alexandre de Senne Pinto, especialista em manejo de pragas com controle biológico, uma prática que vem crescendo entre os agricultores que fazem manejo biológico é a aplicação dos fungos Beauveria bassiana ou Metarhizium anisopliae, sem objetivo específico.

“Meia dose ou dose cheia desses fungos, associados ou isolados, são aplicados junto a um outro produto compatível que já seria utilizado em campo com o objetivo de diminuir pressão de diversas pragas como o sphenophorus, corós, formigas cortadeiras, cupins, broca-da-cana, broca-gigante, cigarrinhas e até minimizar a ocorrência de doenças”, explica.

No controle da broca-da-cana, por exemplo, a associação de Trichogramma galloi com fungos ou até Cotesia flavipes, de acordo com Senne Pinto, aumenta o período residual do conjunto e até melhora a eficácia de controle. “Essas associações de produtos são várias, para diversas pragas.”

Hoje, o setor usa basicamente a vespinha Cotesia flavipes para controle da broca-da-cana, mas a microvespa Trichogramma galloi promove controle superior e com tecnologia de liberação simples e dinâmica.

Para as cigarrinhas, o fungo Metarhizium anisopliae é utilizado, mas nem todos os produtos do mercado são liberados em cana orgânica. “Isso por conta de alguns componentes da formulação. Nesse caso, o uso de arroz mais fungo, conídios puros ou conídios em formulações mais naturais, acabam sendo as poucas opções que se tem”, afirma Senne Pinto.

Nas pragas de solo faz-se o uso de fungos e manejo de palhada, além de manejo físico do solo. Para formigas, o uso de iscas, produtos naturais para uma espécie de fumigação e alguns fungos também são usados.

“Para o manejo de nematoides, fungos como Trichoderma e bactérias como o Bacillus vem sendo usados, com benefícios adicionais como, por exemplo, a produção de fitohormônios que melhoram as características gerais das plantas, como disponibilização de nutrientes – nitrogênio, fósforo, potássio, zinco etc -, com melhor performance frente aos estressores abióticos, seca, como controlador de doenças etc”, detalha.

O fato de o manejo ser diferente, de acordo com o consultor da RPA,.não impossibilita que as tecnologias usadas no cultivo tradicional sejam também usadas na produção da cana orgânica. “Toda a tecnologia aplicada na cana convencional pode ser usada na cana orgânica, exceto agroquímicos.  A colheita mecânica e os avanços nos controles de pragas e doenças via controle biológico e com produtos naturais.têm contribuído para auxiliar a cana orgânica”, relata.

Fornecedor do grupo Balbo há 25 anos, sendo 12 anos utilizando a técnica de manejo orgânico, o produtor Paulo Eduardo Garcia Junior, da Agrícola 3G explica que, nos 300 hectares que hoje contam com cana-de-açúcar orgânica, o manejo é realizado, de preferência, sem a intervenção humana. “Quando necessário utilizamos produtos aprovados pela legislação, natural, biológicos ou seres vivos. Em relação as plantas espontâneas, mantemos o equilíbrio com capinas manuais ou mecânicas”, explica.

NA INDÚSTRIA

De acordo com Trento Filho, na indústria, o processo de fabricação é basicamente o mesmo do açúcar convencional. Porém, no processo de tratamento de caldo, só pode ser utilizada a cal hidratada ou virgem. É proibido o uso de polímeros sintéticos, enxofre e fonte de fósforo. Especialistas explicam que, se por ventura acontece algum processo similar a produção do açúcar convencional, todos os equipamentos devem ser descontaminados, desde a moenda até o empacotamento e ensaque.

A limpeza dos equipamentos de processo deve ser feita somente com água em ebulição para uma boa higienização. Para a limpeza dos tubos dos evaporadores e cozedores, o processo de hidrojateamento é o mais indicado. Nas centrífugas de açúcar, por exemplo, deve ser usada água condensada proveniente dos evaporadores ou água tratada superaquecida para lavar os cristais de açúcar.

PLANEJAMENTO E CONTROLE

Produzir cana orgânica demanda um planejamento agrícola e industrial muito diferente do padrão. Umas das razões, de acordo com Beauclair, é porque a cana tem uma série de exigências a serem atendidas.

Um outro detalhe é a certificação. Trento Filho revela que as certificadoras, através de órgãos de auditoria mundiais e de legislação de alguns.países como Japão e Alemanha exigem que seja comprovado,.por rastreabilidade, que as áreas convertidas para orgânico não apresentem qualquer registro ou indício de contato com produtos agroquímicos. Na indústria, faz-se o rastreamento para saber se no processamento da cana em algum momento foram utilizados produtos proibidos.

“O processamento dessa cana na indústria tem que ser exclusivo, ou seja, é preciso comprovar que somente a cana orgânica está sendo processada. Outra exigência é que a área de cana convertida para orgânica seja identificada como um organismo agrícola em até cinco anos. Desse modo, não se pode converter talhões ou grupo de talhões isolados, mas a área tem que ser caracterizada legalmente e ter uma inscrição ou contrato de arrendamento/parceria”, complementa Trento Filho.

Com o desenvolvimento e clamor pelos produtos orgânicos, a fiscalização tem sido cada vez mais técnica e exigente. Atualmente, a área de produção de cana orgânica e a indústria que irá processar essa cana tem que ser certificadas. As principais certificadoras no Brasil são IBD e ECOCERT. Segundo especialistas, o IBD é a certificadora que tem mais experiência com a cultura da cana.

“As exigências dependem do mercado para onde será vendido o açúcar orgânico. Por exemplo, se for o mercado europeu, o período de conversão é de.36 meses a partir da última aplicação de agroquímicos, ou seja,.somente depois de três anos é que a cana poderá ser considerada orgânica”, explica o consultor da RPA.

PRODUTIVIDADE E DESAFIOS

O produtor de cana orgânica da Agrícola 3G afirma que há uma certa mística sobre o fato de que quem produz orgânico produz menos. “Hoje, a produção de orgânicos não está restringida em produtividade. Não é porque se produz orgânico que deve produzir menos. Nossa média de produção está semelhante ou maior que nas áreas convencionais. Tanto em produção de soja como em cana-de-açúcar”, conta.

Hoje, os canaviais orgânicos têm conseguido ultrapassar a casa das ٧٠ t por ha, segundo Trento Filho. “No início da conversão para orgânico pode haver um decréscimo de produtividade, porém, em dois ou três anos,.a cana suplanta em produtividade a convencional, conseguindo, assim, produzir mais do que 70 t por hectare. O manejo orgânico causa uma modificação no solo, vivifica,.ocorre uma renovação de micro-organismos benéficos (aumento de bactérias e redução de fungos) e com isso os nutrientes ficam mais disponíveis para a cana”, explica.

Para produzir cana orgânica é preciso quebrar paradigmas, principalmente os da equipe agrícola. Além disso, visitas na área da produção orgânica têm que ser frequentes. “A equipe deve estar sempre muito atenta aos serviços a serem executados e estes devem sempre ser realizados em.caráter de urgência, principalmente o controle de ervas daninhas”, afirma o consultor da RPA Consultoria.

O MERCADO DEMANDA

Com um manejo adequado e acompanhamento certo, o produtor de cana orgânica pode atingir a mesma produtividade dos canaviais convencionais...

Com um manejo adequado e acompanhamento certo, o produtor de cana orgânica pode atingir a mesma produtividade dos canaviais convencionais…

Hoje, o mercado orgânico mundial cresce de.10 a 20% ao ano e, segundo o consultor da RPA, é um mercado que tem uma demanda escondida. “Empresas processadoras de alimentos e bebidas aguardam a oferta de produtos orgânicos para desenvolverem novos produtos. Essa oferta tem que ter constância para que essas indústrias tenham segurança de produção.” 

Para o açúcar orgânico, o mercado internacional é o foco. As parcerias neste mercado são firmes e com contratos mais longos. “Os preços pagos pelo açúcar orgânico no mercado internacional são normalmente o dobro do.valor da cotação da bolsa de New York e podem ser maiores se a cor do açúcar for menor. No mercado interno, o crescimento e a demanda são baixos para o açúcar e etanol orgânico. Por outro lado, isto é uma oportunidade para desenvolver parcerias”, destaca Trento Filho.

No início da conversão de um canavial convencional para o um orgânico o custo é maior, em torno de 10% a 30% dependendo do local que se irá.implantar o manejo. No entanto, com o passar do tempo pode acontecer do custo se igualar ou até ficar mais barato. “Um dos segredos de uma produção eficiente e inteligente de açúcar e etanol orgânico é conseguir produzir uma cana com o.custo quase igual ou apenas um pouco superior a cana convencional. E com um trabalho de consultoria adequado,.como o feito pela RPA, é possível aumentar e muito a potencialidade dessas produções,.chegando a conseguir produzir o açúcar e o etanol orgânico na mesma quantidade dos convencionais, atingindo assim, preços melhores no mercado” finaliza. 

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