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Edição 201

Especial – Venda direta de etanol divide o setor

Publicado

em

Natália Cherubin

A greve dos caminhoneiros, que eclodiu no final do mês de maio, gerou não só grandes impactos na produção e escoamento de açúcar e etanol, mas também colocou nos holofotes a discussão sobre um assunto que tem dividido opiniões dentro do próprio segmento canavieiro: a liberação da venda direta de etanol hidratado das usinas para postos de gasolina. De um lado, usinas e distribuidoras se posicionam contrárias à medida e de outro, alguns produtores e sindicatos do setor, junto a outras autoridades, defendem a aprovação do projeto. Mas, afinal, caso a medida passe pela Câmara e seja aprovado, quais seriam os impactos para o setor?

O projeto de decreto legislativo 61/2018, que foi protocolado no final do mês de maio pelo senador Otto Alencar (PSD-BA) e que derruba o artigo 6º da Resolução nº 43, de 22 de dezembro de 2009, da ANP (Agência Nacional de Petróleo) – que proíbe a venda direta do combustível por parte das usinas – foi votado pelo Senado em meados de junho e passou com 47 votos favoráveis, levando-o para a discussão na Câmara dos Deputados. Vale lembrar que durante a greve dos caminhoneiros, a ANP chegou a liberar emergencialmente a venda direta das usinas para os postos, mas a medida foi revogada quando a situação se normalizou.

A justificativa de Alencar é de que o projeto pode beneficiar o livre comércio e baratear o preço do combustível para o consumidor final, já que as usinas não precisariam mais de uma distribuidora. “Aqui está o problema do alto preço do combustível: o monopólio. É um cartel que domina completamente no Brasil, e esse cartel precisa ser quebrado. Não se pode deixar de haver concorrência. Esse projeto não vai prejudicar os que já estão distribuindo, vem dar oportunidade a outras empresas, para que possam se organizar para também distribuir o etanol hidratado mais próximo dos postos”, afirmou o autor do projeto à imprensa.

A Plural (antigo Sindicom), que reúne as distribuidoras, além de grandes entidades do setor sucroenergético como a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), a Biosul (Associação dos Produtores de Bioenergia do Mato Grosso do Sul) e a Alcopar (Associação de Produtores de Bioenergia do Estado do Paraná) vem se posicionando contrárias à medida, enquanto a Feplana e outras entidades como Sindaçúcar-PE (Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool de Pernambuco) e Sindaçúcar-AL posicionam-se a favor da aprovação.

A atual cadeia de distribuição de etanol hidradato, de acordo com a Resolução da ANP, exige que o produto passe primeiro pelas distribuidoras para então ser entregue aos postos de gasolina. Um dos principais pontos defendidos pelos contrários ao projeto é que a tributação sobre a distribuição de etanol ficaria indefinida no caso de mudança na regra. Só para se ter uma ideia, hoje, a tributação sobre a distribuição deste combustível chega a um PIS/Cofins de R$ 0,1109 por l e ICMS que varia entre 12% e 30%, de acordo com cada estado.

A ANP considera que a venda direta exigiria mudanças na tributação que hoje não estão previstas em lei e que a incidência de PIS/Cofins e ICMS sobre as distribuidoras não teria como ser aplicada neste caso, o que levaria a uma queda de arrecadação do governo estimada em R$ 2,2 bilhões ao ano. A ANP foi procurada pela RPAnews, mas informou, via assessoria de comunicação, que “estuda o assunto junto ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) em um grupo de trabalho criado com o objetivo de analisar a estrutura do mercado de combustíveis.”

No último relatório divulgado pela ANP, de 2017, que mostra a participação (em %) das distribuidoras nas vendas nacionais de etanol hidratado no país – que chegaram a um volume total de 13,642 milhões de m3 no último ano – a Raízen aparece como a distribuidora que comercializa o maior volume de etanol no mercado, com 19,74%, seguido da BR, com 17,7%, da Ipiranga, com 17% e da Diamante, com 7,2%. O restante do mercado é dividido entre 126 distribuidoras que, juntas, correspondem a 38,6% do mercado (Gráfico 1).

OS CONTRÁRIOS

Procurada, a Unica optou por não responder, até o fechamento desta edição, os questionamentos enviados pela RPAnews. Via assessoria de comunicação, enviou nota na qual reafirma a sua preocupação com relação a medida aprovada pelo Senado dizendo ser “preocupante pelo fato de não ter existido, até o momento, uma avaliação profunda sobre as consequências desta mudança, como a redução de preços do biocombustível e vantagens ao consumidor na vigência de uma medida como essa.”

A entidade acredita que a medida pode dificultar a implementação do RenovaBio (Política Nacional de Biocombustíveis). O programa tem como principal objetivo reduzir emissões de gases de efeito estufa no setor de transportes, expandindo a produção de biocombustíveis no Brasil. As distribuidoras são parte estratégica dessa política, pois terão que cumprir as metas de descarbonização por meio da compra e venda de CBios (Certificado de Redução de Emissões de Carbono). Isso faz com que os renováveis aumentem sua participação na matriz de combustíveis no longo prazo.

Como funciona o sistema de distribuição do etanol hidratado para os postos

Outro impacto seria a carga tributária. Hoje, somando impostos federais e estaduais sobre o produtor de etanol, a carga tributária média chega a R$ 0,55/l. Com a autorização de venda direta, segundo a Unica, haverá concentração da incidência tributária na etapa da produção, ou seja, aumento de 50% de tributos nas usinas para R$ 0,81/l, na média. Além desse custo adicional aos produtores, o aumento ainda poderá gerar incentivos à sonegação fiscal, provocando uma concorrência desleal no mercado.

“O aumento da complexidade da fiscalização diretamente nas usinas pela ANP traria riscos à qualidade do etanol comercializado, comprometendo a sua imagem, cuja reputação é consolidada como produto nacional confiável e responsável pela melhoria do meio ambiente e qualidade do ar. A regionalização da distribuição, que se espera com a medida, ainda levanta questionamentos, como quem ficará responsável pela manutenção da oferta dos produtos nos períodos de entressafra, e a movimentação do etanol entre as diversas regiões do país, dentre outros”, afirmou a Unica em nota enviada à Redação.

Estudo divulgado pela Plural e feito pela consultoria Leggio, demonstra que o modelo de venda do etanol da usina direto para o posto aumentaria os custos de transporte por perda de escala em R$ 467 milhões ao ano. São estimados ainda outros R$ 410 milhões de custos administrativos e operacionais a serem incorporados às usinas. Ao todo, quase R$ 880 milhões de custos adicionais e ineficiências.

“A Plural vê outras desvantagens: iriam para as rodovias parte do que hoje é movimentado em dutos e trilhos; além do uso de caminhões menores, as usinas teriam que construir frotas próprias que seriam apenas para o transporte de etanol, quando os caminhões das distribuidoras levam três produtos; e uma possível perda de escala elevaria os custos da distribuição dos outros produtos. A mudança levaria a maiores tempos de carregamento, descarregamento e esperas, daí a maior ineficiência”, afirma Marcos Fava Neves, engenheiro agrônomo e professor da FEA/USP.

Já os números de outro estudo feito pela Esalq-Log são um pouco diferentes e mostram que, em 2017, para se levar o etanol em SP das usinas aos postos, passando pelas distribuidoras, o custo foi de R$ 89,09 por m3. Se a comercialização fosse direta, o custo chegaria a R$ 60,77 por m3.

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, Leonardo Gadotti Filho, engenheiro civil e presidente da Plural, explica que o modelo atualmente em vigor foi criado no fim da década de 90, a partir da divisão de responsabilidades entre os setores de produção, distribuição e revenda, de forma a criar uma estrutura sólida que garantisse o abastecimento de combustíveis de maneira segura e consistente ao longo dos 365 dias do ano em todo o Brasil, o recolhimento de impostos, a segurança no transporte e a qualidade do produto a ser distribuído e vendido.

“Dentro desse modelo, as distribuidoras, além de manter um negócio de logística integrado, que contempla transporte ininterrupto, seja rodoviário, dutoviário, ferroviário e aquaviário, respondem ainda pela manutenção de estoques em terminais e bases de distribuição em todo o país. Com isso, ao longo do ano, independentemente das sazonalidades e safras, o suprimento está garantido. Como uma usina, que deve ter como princípio o foco em eficiência de produção e plantio, vai substituir esse sistema logístico criado ao longo de décadas de investimento?”, questiona Gadotti Filho.

Ainda de acordo com ele, a proposta aprovada em regime de urgência no Senado, agora em tramitação na Câmara, não vai modernizar ou trazer mais competitividade ao mercado de combustíveis no Brasil. Pelo contrário, trará atraso. “Na medida em que perdermos um programa como o RenovaBio, teremos fuga de investimentos, potencial de sonegação e aumento de custos e ineficiências em toda a indústria. É disso que o Brasil precisa?”, indaga.

Ricardo Junqueira, CEO da Diana Bioenergia, é contra porque acredita que os benefícios esperados são mínimos perto dos riscos envolvidos. Além dos riscos com relação ao RenovaBio, ele aponta outros três fatores:

1) Aumento do risco de crédito: diferentemente das distribuidoras, os postos não compram à vista e sim possuem um prazo que hoje é dado pela distribuidora. Se a medida passar, as usinas serão obrigadas a conceder tal prazo;

2) Demanda x consumo: há regiões no Estado de São Paulo que são as grandes produtoras de etanol, como São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Araçatuba, entre outras. Entretanto, o consumo nessas regiões em relação a produção é pequeno. Sendo assim, esse excesso que hoje vai para as distribuidoras continuará igual, ou seja, as distribuidoras ainda terão um papel determinante no mercado. O etanol ainda vai precisar fazer a mesma logística atual, fazendo com que o impacto no preço tão esperado com a nova lei seja mínimo;

3) Estocagem: as usinas que operarem sem o papel da distribuidora, deverão investir em capacidade de estocagem, pois o escoamento da produção com a venda direta aos postos vai ser bem menor do que a venda hoje feita para as distribuidoras que, diferentemente dos postos, possuem grandes capacidades de estocagem.

OS FAVORÁVEIS

Alexandre Lima, presidente da Feplana, defende a venda direta do etanol porque acredita que retirar a obrigatoriedade da exclusividade dada ao “atravessador” neste processo comercial reduziria os custos ao consumidor. Segundo ele, com tal custo adicional logístico e mais a margem de lucro das distribuidoras, que é de 13%, aumenta-se o custo final do produto, diminuindo a competitividade do etanol em relação a gasolina, gerando maior consumo do biocombustível. O consumidor seria o maior beneficiado.

Segundo o presidente da Feplana, dependendo da distância a percorrer, pode-se baixar o preço médio do litro do etanol em R$ 0,30. Com isso, haveria maior concorrência entre as distribuidoras e a usinas para venda do etanol para os postos, sobretudo naqueles postos próximos às usinas.

“É pertinente, inclusive, informar que é falso o argumento de que o RenovaBio será prejudicado pela venda direta do etanol pelas usinas. Esclarecemos que, embora seja verdade que a lei atual do RenovaBio não conceda créditos de descarbonização (CBios) à usina com a venda direta, a legislação pode ser facilmente ajustada uma vez que continua sendo construída neste quesito de CBios”, critica.

Para qualificar a lei do RenovaBio, em construção, Lima afirma que bastaria inserir os postos de combustíveis dentro do mercado de CBios. “Afinal, os postos também deveriam ser responsáveis por comprar tais créditos de descarbonização, pois, assim como as distribuidoras já incluídas pela lei, os postos também emitem CO2 com a venda da gasolina e do diesel, devendo e podendo, portanto, serem incluídos para repassar às usinas esses CBios, fazendo o mesmo papel das distribuidoras.”

Fava Neves afirma que sempre foi fortemente favorável a venda direta de etanol por parte das usinas, pois acredita que permitir mais criatividade, liberdade econômica e a convivência de distintos modelos de canais de distribuição, seria um gerador de benchmarks, inovação e eficiência, apesar de apresentar riscos, como toda atividade. Ele defende também a ideia de usinas e cooperativas montarem postos [lojas de fábrica] como instrumentos de negócios e de comunicação com o consumidor final, podendo usar suas marcas.  

“De forma alguma acredito que a distribuição direta tomaria o mercado, pois o elo distribuidor [atacadista] tem enorme relevância em qualquer atividade de negócio, por sua escala, eficiência operacional e importância, além de contratos de exclusividade com suas bandeiras varejistas [postos]. Mas sim tomaria uma parte menor onde fosse bem mais eficiente pela proximidade e pelo modelo de negócios, ou seja, algo bem regionalizado, que beneficiaria as cidades que cercam usinas”, salienta.

No entanto, Fava Neves admite que não parou para pensar em soluções para a forma de cobrança de impostos e da geração dos CBios para o RenovaBio, duas coisas que, para ele, não podem ser ameaçadas de forma alguma. “Tenho certeza que há cérebros maravilhosos no setor para encontrar mecanismos que permitam a liberdade e a criatividade sem danos à arrecadação e, principalmente, ao RenovaBio. Caso não exista solução, a distribuição direta deve ser sacrificada em nome do RenovaBio, com tristeza de minha parte”, opina.

Ricardo Pinto, sócio-diretor da RPA Consultoria, acredita que a venda direta pode ser uma alternativa para usinas/destilarias mais distantes de grandes centros e em volume para atendimento de postos locais, ou seja, será uma alternativa para, no máximo, 5% a 6% da produção brasileira de etanol hidratado.

“Certamente a grande maioria do etanol hidratado ainda será comercializada pelas distribuidoras em função de otimização logística que elas possuem em comparação com as próprias usinas/destilarias em diversas situações. A redução do preço do etanol hidratado ao consumidor final poderá ocorrer apenas nos postos que estejam localizados mais próximos das unidades que lhes venderem. Acredito, portanto, que esta redução de preços será bem localizada”, adiciona.

PRECISA DE ESTUDO

Manoel Carlos de Azevedo Ortolan, presidente executivo da Copercana e presidente da Canaoeste, acredita que o tema e as vantagens e desvantagens devem ser estudadas de forma mais aprofundada, assim como as questões sobre o recolhimento de impostos, logística etc. “Tal como está, não me parece uma boa solução. É preciso que o setor também seja remunerado. Uma concorrência saudável pode ser boa, mas se for desleal é ruim para todos. Me parece claro que a questão da fiscalização precisará ser firme.”

André Rocha, presidente do Fórum Sucroenergético, afirma que os setores envolvidos precisam analisar a questão, cada um com seu sindicato local e estudar as posições de cada um. “Precisamos abrir uma discussão com as Secretarias Estaduais da Fazenda e com o próprio Ministério da Fazenda, ver o resultado do trabalho do Cade e ANP, e analisar melhor, sem paixões. Temos três partes interessadas nos ganhos: os produtores, as revendas e o consumidor”, enfatiza Rocha.

POR QUE ASSUNTO DIVIDE O SETOR?

O assunto está dividindo opiniões porque o setor vem trabalhando incessantemente pela implantação do RenovaBio, um marco regulatório importante para o etanol. E no RenovaBio, o papel das distribuidoras é fundamental, segundo o sócio-diretor da RPA Consultoria. “A comercialização direta de uma parte da produção brasileira de etanol diretamente de usinas/destilarias para postos demandará uma sofisticação na regulamentação e operação do RenovaBio.”

Para Ortolan, as opiniões divergem pela desigualdade de oportunidades. “Algumas indústrias estão próximas dos centros consumidores, mas temos regiões do país onde a distância é grande. O número de postos a serem atendidos é muito grande em relação ao número de indústrias. Quem sabe um sistema misto onde coexistam os dois ramos comercializando não seja a melhor opção?”

O presidente da Feplana entende que as divergências não deveriam acontecer, uma vez que as distribuidoras continuarão participando do mercado de venda do etanol produzido pelas usinas, pois o pleito trata somente do fim do impedimento de que as usinas participem da comercialização junto aos postos de combustíveis. “Com isso, além da justiça com as usinas, aumentará a concorrência que é salutar em economia de mercado.”

Lima adiciona que, além dos principais beneficiários que serão os consumidos finais do etanol e ainda o próprio mercado de combustíveis e o mercado futuro dos CBios perante o aprimoramento da lei do RenovaBio, a venda direta também será muito positiva para as usinas de médio e pequeno porte.

Ricardo acredita que se o projeto passar, como ponto positivo haverá crescimento das vendas de etanol hidratado nas regiões mais próximas às usinas/destilarias que adotarem este canal de comercialização. Desta forma, em estados onde hoje as vendas de etanol hidratado são muito pequenas pela concorrência com o preço da gasolina nos postos, nas regiões destes estados onde há produção de cana e, por consequência, de etanol hidratado, poderá haver um importante crescimento nas vendas. “No lado negativo, isso poderá criar alguns problemas adicionais regulatórios para o RenovaBio.”

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